segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Gonzaga: uma sublime homenagem a um rei da música popular


É difícil tentar escrever de forma crítica a respeito de um filme que, no conjunto da obra, levando-se em consideração todos os aspectos técnicos, somente foi capaz de fazer emocionar.

Você se pergunta, então, se a emoção causada pelo que foi visto tornou por engolir eventuais problemas ou falhas. Mas depois de pensar bem sobre a questão, ainda mais em se tratando de cinema, você chega à singela conclusão de que se você, enquanto espectador, foi envolvido completamente pela obra é porque, de fato, não houve falhas. E o filme tirou você daquela realidade a qual você está acostumado e te levou dali para algum outro lugar.

É o que posso falar, de cara, de Gonzaga: de pai pra filho, filme dirigido por Breno Silveira. Desde o começo, o filme transporta o espectador para além das poltronas das salas de cinema, em uma viagem ao sertão árido do Nordeste brasileiro, do forró pé-de-serra, de amores impossíveis (mas reais), e ao desnudamento de um rei.

Luiz Gonzaga, o “rei do baião”, é mostrado por tudo aquilo que é, seja pela música, pela capacidade de encantamento com a música, com o apelo de cantar para o povo e até mesmo com sua incapacidade de lidar com o primeiro casamento, com o espírito liberal da primeira esposa – Odaléia Guedes dos Santos (Nanda Costa) – e com o próprio filho, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha (Júlio Andrade).

Júlio Andrade, que interpreta Gonzaguinha na fase adulta,
e Adélio Lima, que vive Gonzagão aos 70 anos: encenações convincentes e emocionantes.

Aliás, é pelos olhos de Gonzaguinha, em diversas idades, pela qual a história é contada em sua boa parte. Tudo começa com o tempo “presente”, no começo dos anos 80, quando pai e filho ainda não haviam se entendido. Durante boa parte de sua infância, Gonzaguinha foi deixado de lado pelo pai, principalmente por conta das turnês e apresentações que Luiz Gonzaga fazia Brasil adentro.

Mas há outro fator, colocado de forma ora sutil, ora visceral pelo diretor: a incerteza de que o filho era realmente fruto de sua relação com a primeira mulher, Odaléia, e não de uma relação anterior ou extra-conjugal. Tal “incerteza”, porém, consta apenas no filme. Na versão considerada oficial, não há dúvidas de que Gonzaguinha seja filho adotivo do rei do baião.

Isso não muda, porém, a qualidade do filme em termos documentais (apesar de existirem outros pontos não mencionados, como a ligação maçônica do músico). Tal dúvida sobre a paternidade, ao menos no filme, assim como a dificuldade de Gonzagão em lidar com a criação do filho, em boa parte relegada a amigos, é o que norteia a relação da vida da dupla e claro, do filme. Quando o espectador começa a acreditar que eles estão se entendendo, já na velhice de Gonzagão e vida adulta de Gonzaguinha – este já fazendo grande sucesso com sua própria música –, vemos que as feridas são mais fortes.

Nivaldo Expedito de Carvalho,
o Chambinho do Acordeon,
também é músico e vive Luiz Gonzaga
entre os 30 e os 50 anos.
Os conflitos entre pai e filho, em diferentes épocas, são registrados e encenados de forma magistral pelo elenco. Land Vieira interpreta a fase adolescente de Luiz Gonzaga, enquanto Nivaldo Expedito de Carvalho, o Chambinho do Acordeon (sim, músico na vida real), é o responsável pela fase adulta (e que mais aparece no filme).

Adélio Lima cuida da interpretação do rei do baião na maturidade, aos 70 anos. Destaque principal para os dois últimos. A interpretação de ambos é tão emblemática que por muito pouco não notamos que são atores diferentes; a impressão é que o Gonzaga mais velho do filme seja apenas a versão mais jovem com uma maquiagem muito bem feita. Ponto para a brilhante interpretação da dupla.

Ainda no aspecto interpretação, o trio que dá vida ao próprio Gonzaguinha é impecável. Alison Santos, de 14 anos, mostra grande nível e expressividade no olhar, característica que mostra seu ponto mais alto na cena em que o problemático filho do rei do baião é abordado por policiais nas ruas do Rio de Janeiro e um deles, de forma agressiva, pergunta quem é seu pai. Por três vezes, o menino diz o nome de Luiz Gonzaga e leva tapas do policial. Na última e mais incisiva vez, mostra um realismo comovente.

Alison Santos, o Gonzaguinha na adolescência.
Júlio Andrade, que vive Gonzaguinha na fase adulta, não deixa por menos. Sua caracterização como o músico chega a ser espantosa. Por mais absurdo que possa parecer, imagino que um espectador menos atento, que vai prestigiar o filme sem conhecer a vida dos músicos e não saber que Gonzaguinha, na vida real, morreu em 1991, poderia achar que o próprio músico interpreta a si mesmo no cinema: tanto pela semelhança física quanto pela comovente interpretação.

Breno Silveira, que já havia mostrado a história da dupla Zezé Di Camargo & Luciano no cinema, com o bem recebido 2 filhos de Francisco, volta à carga musical com outra joia do cinema documental. Além das cenas, são mostradas imagens e fotografias reais de alguns dos acontecimentos, como o acidente de carro de Luiz Gonzaga, em maio de 1951, em que perdeu a visão de um dos olhos; a curiosa contratação de um sapateiro e um anão durante uma das turnês (após a demissão de dois dos músicos, que estavam bêbados nas apresentações) e, como não poderia deixar de ser, a contextualização histórica de algumas músicas de Gonzagão.

Este último item, por sinal, feito de forma encantadora, como na música Respeita Januário. Na canção, é contada a ocasião em que Luiz Gonzaga volta a Exu, sua cidade natal, em 1946, para rever os pais que não via há quase dez anos. Ele havia saído foragido por conta da ameaça de morte do coronel Raimundo Deolindo, que não aceitou a ideia do jovem, o “mulato sem eira nem beira” Luiz Gonzaga, se enamorar de sua filha, Nazarena (Cecília Dassi). Ao som da música, que leva o nome do pai, a sequência mais lembra um clipe por resgatar, em imagens, muitos dos trechos das letras.

Os verdadeiros Gonzaguinha e Gonzagão, em apresentação.

Em um país como o Brasil, que absorve a musicalidade vazia e mecânica de tantas partes do mundo ainda que tenha grande riqueza musical, Gonzaga: de pai pra filho é mais que uma revisitação cinematográfica a um dos maiores nomes da música popular brasileira, autor da música que hoje é considerada o hino do Nordeste – Asa Branca. O filme é um convite para todos nós para atentar aquilo que Gonzagão já denunciava: o sofrido Nordeste, que com seus filhos ajudou a construir o Sudeste do Brasil, continua esquecido, ardendo e judiado.

E os alazões continuam morrendo de sede.


Sobre o autor

Mário Bentes
Jornalista, escritor e fotógrafo. Já passou por veículos como "Portal Amazônia" e "Portal D24am". Atualmente é repórter freelance da revista "Empório Amazônia" e correspondente do jornal "Diário do Amazonas" em Brasília.



Nenhum comentário:

Postar um comentário