quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

ENSAIO LITERÁRIO


A REFRAÇÃO DO ESTRATO SONORO NA POÉTICA SIMBOLISTA: brevidades



I

Moréas et le symbolisme, par Paul Gauguin
Uma das hipóteses mais convergentes entre os estudiosos de História da Literatura para tratar acerca das origens do Simbolismo, de matriz francesa e comum às letras ocidentais do período em recorte, postula que o último decênio do século XIX, mais especificamente, quando da publicação do Manifeste du Symbolisme (1886), por Jean Moréas (1856-1910), se notabiliza por ser o momento áureo dessa tendência estética, caracterizada, entre outras constantes, pelo apreço impulsivo em relação ao experienciar de um estrato linguístico anterior e ilógico à mera compreensão dos conteúdos exprimidos pela linguagem cotidiana – e poética, se pensarmos no labor formal dos parnasianos –, uma vez que a representação mimética do signo linguístico não é mais considerada como a legítima substância da poesia, senão o impelir das vibrações musicais subjacentes ao significado.

A ideia de poésie purê, que não comunica por si só, mas é matéria propriamente acabada em si mesma, de certo modo, fundamenta toda uma concepção de idealidade vazia, que sintetiza, na fuga do real, sob a égide do mistério, o operar das possibilidades associativas do verbo plurissignificativo com as forças da sonoridade, consequentemente, resultando na afirmação das “tensões dissonantes” da lírica dos simbolistas, cujas novidades trazidas por seus expoentes visavam à la musique avant toute chose, pois, por meio dela, o “eu profundo”, ao emergir das esferas do inconsciente, transporia a zona de consciência e “atingiria os extratos mentais anteriores à fala”, com o intuito trazer para o plano artístico, por meio da metaforização, as mediações simbólicas entre o mundo interior, intuitivo, e o exterior, lógico, do poeta.

Diante dessas considerações preliminares, pretende-se relacionar os elementos sonoros que trazem à cena a musicalidade presente na poesia de Cruz e Sousa (1861-1898), Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) e Augusto dos Anjos (1884-1914), bem como as possíveis recorrências temáticas que constatam o enquadramento desses autores em um prisma simbolista sui generis.


II

Quanto à produção de uma literatura nacional, pode-se dizer que, se Cruz e Sousa não nega o contributo da tradição parnasiana, ou já dos precursores da nova estética, subsequente a ela, mesmo assim, não se pode afirmar de todo que o poeta situa-se entre a originalidade e a repetição porque, ao contrário da conciliação, mediante o simples diálogo com as produções de Verlaine e Mallarmé, o autor se apropria do melhor de seus mestres para superá-los. 

Já sobre a simbiose efetuada pelo escritor de Broquéis (1893) entre a poesia e a música, e, em concordância com a leitura de Ronaldo Assunção (1993) para essa problemática, acredita-se, aqui, que o elemento rítmico, musical, é basilar para a evocação, em Cruz e Sousa, de um sentimento de nostalgia profunda, que induz à apatia e remonta ao “Spleen” de Baudelaire: seria o “Banzo” africano, sentimento segundo o qual se toma do indivíduo, a partir do fortuito da desdita, a alegria da liberdade, e gera-se uma tensão, espécie de “dialética negativa”, que torna irreconciliável as disparidades entre esse sujeito e o meio em que vive, um completo desajustamento decorrente de sua anormalidade, como se expressa no excerto a seguir, de “Sonata”:


Do immenso Mar maravilhoso, amargos,
Marulhosos murmurem compungentes
Canticos virgens de emoções latentes,
Do sol nos mórnos, mórbidos lethargos...

Canções, leves canções de gondoleiros,
Canções do Amor, nostalgicas balladas,
Cantai com o Mar, com as ondas esverdeadas,
De languidos e trémulos nevoeiros!

Tritões marinhos, bellos deuses rudes,
Divindades dos tártaros abysmos,
Vibrai, com os verdes e ácres electrismos.
Das vagas, flautas e harpas e alaúdes!

Ó Mar supremo, de flagrancia crúa,
De pomposas e de ásperas realezas,
Cantai, cantai os tédios e as tristezas
Que érram nas frias solidões da Lua 


A começar por seu título, “Sonata”, um modo de técnica para o instrumental clássico, que obedece, em média, de três a quatro movimentos em sua ordem geral, a saber, o primeiro, como sendo o plano predeterminado da exposição, desenvolvimento e reexposição, donde, a posteriori, passa-se a uma cadência mais regular e lenta, e, num outro momento, o terceiro, e culminante, transmuta-se em pulsação mais rápida e liberta, os desvelamentos da musicalidade no poema são entrevistos pela carga original vinculada a palavra “Mar”, ressonância repercutida sobre todos os demais versos, que são harmonizados com esse vocábulo, e surgem, novamente, em “MARavilhoso”, “aMARgos” e “MARulhoso”, por exemplo, sugerindo o som das vagas, assim como de sua quebra, em termos como “comPUNgentes”, ou frases inteiras, representativas do ruído da água, como “Ó mar suPREmo, de FRAGRÂncia CRUa, [...].”

Alphonsus de Guimaraens, igualmente, propõe essa correspondência dos elementos sonoros com o signo verbal, em “Ária do Luar” , poema em que se é possível inferir, do ponto de vista de uma exegese que privilegie sua imagística, não apenas o jogo sinestésico contido no cruzamento de sensações — como no trecho “O luar, sonora barcarola / Aroma de argental caçoula” —, fruto da fusão de suas expressões em uma única impressão, mas os desdobramentos do intercâmbio estabelecido entre a luminosidade da lua e a “Cauda de virgem”, ou, os “lençóis”, “claros de neve”. É válido ressaltar, também, que, como o poeta citado anteriormente, o autor em questão se utiliza de uma forma do cânon musical, Ária, composição, de cunho sentimental, destinada ao canto, que, a esse respeito, muito nos diz sobre a conformação estética, a partir da sucessão de tons melódicos, que evidenciam, com base nessa importância assumida pelo comprometimento de Guimaraens com o ideário de musicalidade simbolista, o movimento criador de uma dinâmica para a descrição dos efeitos de um anoitecer enluarado:


O luar, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
Azul, azul em fora rola...

Cauda de virgem lacrimosa,
Sobre montanhas negras pousa,
Da luz na quietação radiosa.

Como lençóis claros de neve,
Que o sol filtrando em luz esteve,
É transparente, é branco, é leve.

Eurritmia celestial das cores,
Parece feito dos menores
E mais transcendentes odores.

Por essas noites, brancas telas,
Cheias de esperanças de estrelas,
O luar é o sonho das donzelas.

Tem cabalísticos poderes
Como os olhares das mulheres:
Melancoliza e enerva os seres.

Afunda na água o alvo cabelo,
E brilha logo, algente e belo,
Em cada lago um sete-estrelo.

Cantos de amor, salmos de prece,
Gemidos, tudo anda por esse
Olhar que Deus à terra desce.

Pela sua asa, no ar revolta,
Ao coração do amante volta
A Alma da amada aos beijos solta.

Rola, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
O luar, azul em fora, rola... 


Um contracanto a faceta musical diversa na escola simbolista seria Augusto dos Anjos. Se, tanto em Cruz e Sousa quanto em Alphonsus de Guimaraens a presença da natureza, nos poemas em estudo, é um índice favorecedor de um estado que “melancoliza e enerva os seres”, nos dizeres desse último, em Augusto dos Anjos há certo distanciamento crítico, motivado pelo modo desesperador com que seu olhar incide sobre a matéria humana, assim instaurando, em sua poiésis, como que uma autofagia. Em “O Bandolim”, isso é nitidamente perceptível na palavra Fado, grafada com maiúscula alegorizante, que, além de operar como eixo estruturador, e por que não dizer fundamental, do soneto, pode ser tomada a partir de, pelo menos, duas acepções: a primeira, trata uma ideia de vaticínio do qual não se pode fugir, e bem se sabe que, em Augusto dos Anjos, esse principio se relaciona com a morte; a segunda, refere-se a uma espécie de canção popular de origem portuguesa, de caráter lamentoso, acompanhada por instrumentos de cordas.


Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas
Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez d’um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão às bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é triste e calma,
Teu canto, vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d’alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!  


III

Em suma, e em termos comparativos, os dois primeiros poemas tratados nessa breve interpretação seguem uma trajetória concomitantemente inversa, uma subjetividade objetiva, isto é, a partir dos elementos de uma poética intrínseca à natureza, como o “Mar”, em Cruz e Sousa, e o “Luar”, em Alphonsus de Guimaraens, o eu-lírico se apresenta, em seu tédio, sem necessariamente adentrar em inquietações metafísicas, diferentemente de como se dá em Augusto dos Anjos, que se utiliza de temas musicais para, em sua objetividade subjetiva, descrever a experiência cognitiva suscitada pela combinação harmoniosa e expressiva do som, ideal de suma importância para a estética simbolista.


REFERÊNCIAS

TEXTOS TEÓRICOS E POESIA

1. ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1998. p. 100.
2. ASSUNÇÃO, R. . Uma leitura polifônica de Cruz e Sousa. Revista Travessia, Florianópolis-SC, v. 1 nº26, p. 103-111, 1993.
3. FRIEDRICH, Hugo. “Perpectiva e retrospecto”. In: Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise M. Curioni. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991. p. 15-34.
4. MOISÉS, Massaud. A Literatura brasileira: o Simbolismo (1893-1902). 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 13-47.

TEXTOS ELETRÔNICOS (POEMAS)

5. “Sonata”, de Cruz e Sousa: http://pt.wikisource.org/wiki/Sonata.
6. “Ária do Luar”, de Alphonsus de Guimaraens: http://www.jayrus.art.br/Sessao_Revisao.htm.

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