sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A Palavra “Cão” não morde

No romance vencedor do Prêmio Clarín 2010, o argentino Gustavo Nielsen convida o leitor a uma reflexão sobre os limites da linguagem, seja a literária, seja a fotográfica



Do título às penúltimas páginas, passando pela epígrafe, A Outra Praia, estreia do argentino Gustavo Nielsen nas livrarias brasileiras, é uma narrativa carregada de símbolos. Isso talvez se deva à atenção dada pelo autor ao filósofo e semiólogo francês Roland Barthes, citado na abertura e nos agradecimentos. É como se tudo na vida fosse passível de uma segunda leitura. Inclusive o livro.


“Não reconheço ninguém”, diz o fotógrafo Antonio, o protagonista. A recíproca também vale: no contato inicial com a obra, demoramos a identificá-lo. O personagem e sua história vão surgindo lentamente aos nossos olhos, como no processo de revelação em que uma fotografia analógica é trazida à luz. Seguimos seu desencanto com a vida e com o casamento. Acompanhamos o magnetismo despertado pela jovem anônima clicada nas ruas de Buenos Aires. E, desencontrados, vagamos pelos capítulos como ele na praia, em busca de respostas: “Não se trata de amor por você nem por ninguém; o amor desapareceu da minha vida; minha única paixão é este ruidinho, clique”. A leitura então ganha foco e, num clique, sacamos o enredo. Agora é preciso reler página por página para comprovar que os indícios estavam lá.medo da incompreensão

Nessa obra, em que tudo tem dois lados, Nielsen sugere uma oposição interessante. Abre o livro com uma frase de Barthes (“Assim é a fotografia: não sabe dizer o que mostra”), seguida da curiosa cena em que amigos elucubram a história por trás de uma série de slides das férias de um casal, adquirida num bricabraque. A forte presença de imagens fotográficas que não conseguem dizer ecoa na opção pelo narrador onisciente, sugerindo uma reflexão sobre os limites das formas de expressão e a impossibilidade de dar conta do todo. De um lado, a foto, ilusão de reter o real. De outro, a narração literária, que, mesmo onisciente, é incapaz de mostrar de fato. As linhas sugerem, induzem a imaginação, mas, como já se disse, a palavra “cão” não morde.

Talvez a única fraqueza dessa obra de literatura fantástica esteja justamente no lidar com os limites. A onisciência do narrador de Nielsen por vezes soa exagerada, em especial nos apostos dos diálogos, que explicam que fulano ironizou, mudou de assunto ou fez-se de desentendido. Como se, ao criar a trama cheia de símbolos escondidos, o autor temesse a incompreensão.

No capítulo 14, epílogo bem-humorado com pegada happy end, a amarração destoa do tom soturno da obra. Mas mesmo aí cabe uma segunda leitura. O personagem escritor se chama Gustavo, como o autor. O que abre um jogo metaficcional em que A Outra Praia seria a outra vida de Gustavo Nielsen, confirmação da tese do livro – que não vou revelar para não tirar a surpresa do leitor.


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