terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Philip Roth e o direito de silenciar

A possibilidade do autor silenciar a sua voz narrativa é um direito à dignidade. Não à dignidade própria, mas ao respeito maior pela própria arte.


por Gustavo Melo Czekster (14/11/2012)
em Literatura

No livro Papa Hemingway, contando os últimos dias de Hemingway antes do suicídio, seu amigo e editor A. E. Hotchner transcreveu a impressão deixada pelo grande escritor americano no seu médico, Vernon: “Hotch, honest to God, if we don’t get him to the proper place, and fast, he is going to kill himself for sure. It’s only a question of time if he stays here, and every hour it grows more possible. He says he can’t write any more—that’s all he’s talked to me about for weeks and weeks. Says there’s nothing to live for. Hotch, he won’t ever write again. He can’t. He’s given up. That’s the motivation for doing away with himself.” Em uma tradução livre, esta foi a constatação do médico: “Hotch, sendo completamente honesto, se não o levarmos até um lugar apropriado, e rápido, ele com certeza vai se matar. É somente uma questão de tempo se ele continuar aqui, e a cada hora que passa fica mais possível. Ele diz que não pode mais escrever – é tudo o que ele tem me falado por semanas e semanas. Diz que não existe mais nenhum motivo para viver. Hotch, ele nunca mais vai escrever. Ele não consegue. Ele desistiu. Esta é a motivação para que acabe com a própria vida.” De todas as análises feitas para tentar explicar o suicídio de Hemingway, chama atenção que os motivos sejam clínicos, fáceis de entender, como se o suicídio fosse uma questão lógica: ele estava deprimido, sentia dores lancinantes em decorrência de um acidente em um safari, estava paranoico, bebeu demais. Ninguém fala na ausência das palavras antes abundantes, no abismo deixado na alma, no silêncio de se saber finito, na inexorabilidade do tempo.

Como um escritor acaba?

Philip Roth, escritor americano, autor de Nêmesis, Operação Shylock e O teatro de Sabbath, entre outros livros, recentemente anunciou que estava abandonando a escritura. Em entrevista à revista francesa Les Inrockuptibles, em outubro de 2012, ao ser perguntado se ainda mantinha o desejo de escrever, Roth surpreendeu ao anunciar que não tinha mais tal vontade, que não mais lançaria livros e que se dedicaria a trabalhar nos seus diários e arquivos. Diante da pergunta “Você não está exagerando um pouco?”, Roth respondeu: “Escrever é estar sempre errado. Todos os nossos rabiscos contam a história de nossos fracassos. Não tenho mais a energia da frustração, nem a força de me confrontar. Porque escrever é se frustrar: passamos todo nosso tempo escrevendo a palavra errada, a frase errada, a história errada. Nos enganamos sem parar, falhamos sem parar e, assim, precisamos viver em uma frustração perpétua. Passamos o tempo dizendo a nós mesmos: isso não está funcionando, preciso recomeçar. Agora estou numa fase diferente da minha vida: perdi toda forma de fanatismo. E não sinto nenhuma melancolia.”

Por maior que seja a racionalização feita por Philip Roth para explicar a desistência, uma das críticas mais feitas aos seus últimos romances era a repetição dos temas. Sem entrar em méritos literários ou críticos, nesta mesma entrevista, Roth anunciou que tal decisão foi tomada após o projeto pessoal de reler a sua obra e ser incapaz de ultrapassar O complexo de Portnoy. Cada livro lançado dissipa um pouco a voz interna do escritor, a sua frustração, o seu confronto; Philip Roth deve ter escutado a voz do passado repetindo-se dentro da obra atual. E pode ter chegado à inédita conclusão de que tudo que precisava dizer já foi dito, que as palavras não eram mais necessárias, que a fonte da inventividade secou. Que ele viraria um plagiador de si mesmo, algo inaceitável para qualquer artista.

É uma ilusão imaginar que tudo pode ser eterno. Até mesmo a criatividade acaba: a única diferença é que, às vezes, a criatividade termina ainda em vida e, em outras, a morte é piedosa com o autor, silenciando o corpo e sepultando a inconformidade interna que lhe animava. Muitos são os casos de escritores que lançaram somente uma obra e depois foram incapazes de escrever outra: em algumas ocasiões, a necessidade de contar a história é mero fio de água, fácil de ser obstruído. Hemingway não foi o primeiro escritor cuja voz narrativa interna silenciou, mas talvez tenha sido mais um a tomar a decisão extrema de confundir literatura e vida. Pensando na decisão de Roth, não posso deixar de lembrar outro trecho da biografia de Hemingway, onde Hotchner menciona a extraordinária dificuldade que o escritor passava para diminuir The dangerous summer de 92.453 palavras para 40.000. Cabe destacar que Hemingway é considerado um dos escritores com maior poder de síntese, sendo que as suas regras para bem escrever sempre se basearam justamente no corte de situações e palavras desnecessárias. Pela primeira vez, o editor viu a insegurança, a incerteza, a incapacidade de lidar com a matéria prima do fazer literário: a própria palavra. Hemingway tinha pesadelos com o livro e mencionou viver uma história digna de Kafka para resumir o seu trabalho. Nas palavras de Hotchner, o escritor estava “abatido física e emocionalmente” devido a este embate interno.

Quando a decisão de Philip Roth de aposentar a sua escritura foi anunciada, milhares de fãs protestaram por todo o mundo. Imaginaram-se traídos pelo seu autor favorito. Não há razão em tal inconformidade, pois é visível a confusão feita entre a eternidade da arte e a figura mortal e pálida do próprio criador. A possibilidade do autor silenciar a sua voz narrativa é um direito à dignidade. Não à dignidade própria, mas ao respeito maior pela própria arte, respeito tão grande que o leva a abdicar da própria literatura para não destruir o legado erigido em anos de cuidadoso labor. Philip Roth ganhou as maiores honrarias que um escritor pode conseguir em vida, com exceção do Prêmio Nobel de Literatura, que todos sabem que é um prêmio que leva em consideração mais a política do que o valor literário. Ele não precisa mais provar nada.

A vida é uma peça de teatro, já dizia Shakespeare. Existe grande dignidade em saber o momento em que se deve abandonar o palco. Além disso, é preciso ser humilde como nunca quando se percebe que a presença do autor mais atrapalha a obra do que ajuda. Existe uma interessante discrepância: o autor cria a obra, mas ela possui vivência própria, a qual pode ser atrapalhada pelo demiurgo que lhe gerou. Ter o direito de não estragar o próprio legado de glórias com a veleidade da ruína causada pelo tempo é o direito máximo de um ser humano. Shakespeare soube como ninguém abandonar a peça; sua saída foi tão silenciosa que todos sabem que um ator brilhante estava interpretando, mas ninguém o viu entrar e nem percebeu a sua retirada. Hemingway escolheu a saída mais violenta na sua lógica brutal: se literatura é vida, a ausência da literatura é a morte. De acordo com notícias veiculadas na imprensa e repercutidas pelo mundo, Gabriel García Marquez enfrenta sérios problemas de memória, um indicativo de que a sua degeneração mental teve início. Sua saída será lenta e acompanhada com angústia pelo público, que o confrontará com a sua obra passada, em uma comparação que ele só pode perder. Prefiro pensar que, quando García Marquez escreveu Viver para contar, não era um simples título, e sim uma evocação desafiadora para o tempo, uma última audácia: “estou vivo e ainda lembro”.

Muito podemos aprender com a dignidade de Philip Roth: podemos rever os próprios atos, ver o momento em que a escala descendente da vida começa a comprometer a imagem deixada no mundo. Quando ficavam velhos, os romanos abandonavam as intrigas da cidade e iam para o campo se dedicar aos afazeres mais simples e à filosofia. Quantos políticos podemos dizer que sabem o momento de abandonar a arena, quantos donos de empresa aferroam-se ao poder e lutam para mantê-lo? Sem a necessidade de Philip Roth ser Philip Roth, com o direito ao silêncio e à circunspecção assegurados, ele pode reencontrar o homem que um dia foi, sem máscaras ou facetas sociais que lhe foram impostas. Talvez o verdadeiro e mais excitante desafio que ele possa ter, aquele que imaginou não mais existir quando a literatura silenciou, esteja começando agora.

A incomodação com o anúncio de Philip Roth pode estar em outro nível. Em Mil e uma noites, Sheherazade nos ensinou que escrever é adiar o próprio fim. Quando um autor para de escrever, sente-se que ele admitiu a proximidade da morte. Não existem mais encantos ou truques para afastá-la. Ao anunciar o seu desejo de parar de escrever, Roth também admite que a sua voz acabou e que, agora, a morte pode levá-lo. É o mesmo que o fim da memória de García Marquez lhe representa: uma morte em vida. Contudo, a julgar pelos últimos livros lançados, percebe-se que o autor pode estar virando o personagem da própria história, admitindo a contragosto a velhice, a perda do poder sexual, o cansaço, a onipresença da morte a lhe rodear. Philip Roth admite que até os deuses do Olimpo literário podem sangrar e morrer, e esta é uma lição que todos deveriam saber desde o primeiro ar que entrou nos pulmões. Uma lição tão implacável que Hemingway preferiu morrer, algo que todos nós um dia precisaremos encarar: assim como a literatura, tudo acaba.


Fonte: AMÁLGAMA

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