A REFRAÇÃO DO ESTRATO SONORO NA POÉTICA SIMBOLISTA: brevidades
Por Brenno Carriço
I
Moréas et le symbolisme, par Paul Gauguin |
A ideia de poésie purê, que não comunica por si só, mas é matéria propriamente acabada em si mesma, de certo modo, fundamenta toda uma concepção de idealidade vazia, que sintetiza, na fuga do real, sob a égide do mistério, o operar das possibilidades associativas do verbo plurissignificativo com as forças da sonoridade, consequentemente, resultando na afirmação das “tensões dissonantes” da lírica dos simbolistas, cujas novidades trazidas por seus expoentes visavam à la musique avant toute chose, pois, por meio dela, o “eu profundo”, ao emergir das esferas do inconsciente, transporia a zona de consciência e “atingiria os extratos mentais anteriores à fala”, com o intuito trazer para o plano artístico, por meio da metaforização, as mediações simbólicas entre o mundo interior, intuitivo, e o exterior, lógico, do poeta.
Diante dessas considerações preliminares, pretende-se relacionar os elementos sonoros que trazem à cena a musicalidade presente na poesia de Cruz e Sousa (1861-1898), Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) e Augusto dos Anjos (1884-1914), bem como as possíveis recorrências temáticas que constatam o enquadramento desses autores em um prisma simbolista sui generis.
II
Já sobre a simbiose efetuada pelo escritor de Broquéis (1893) entre a poesia e a música, e, em concordância com a leitura de Ronaldo Assunção (1993) para essa problemática, acredita-se, aqui, que o elemento rítmico, musical, é basilar para a evocação, em Cruz e Sousa, de um sentimento de nostalgia profunda, que induz à apatia e remonta ao “Spleen” de Baudelaire: seria o “Banzo” africano, sentimento segundo o qual se toma do indivíduo, a partir do fortuito da desdita, a alegria da liberdade, e gera-se uma tensão, espécie de “dialética negativa”, que torna irreconciliável as disparidades entre esse sujeito e o meio em que vive, um completo desajustamento decorrente de sua anormalidade, como se expressa no excerto a seguir, de “Sonata”:
Do immenso Mar maravilhoso, amargos,
Marulhosos murmurem compungentes
Canticos virgens de emoções latentes,
Do sol nos mórnos, mórbidos lethargos...
Canções, leves canções de gondoleiros,
Canções do Amor, nostalgicas balladas,
Cantai com o Mar, com as ondas esverdeadas,
De languidos e trémulos nevoeiros!
Tritões marinhos, bellos deuses rudes,
Divindades dos tártaros abysmos,
Vibrai, com os verdes e ácres electrismos.
Das vagas, flautas e harpas e alaúdes!
Ó Mar supremo, de flagrancia crúa,
De pomposas e de ásperas realezas,
Cantai, cantai os tédios e as tristezas
Que érram nas frias solidões da Lua
A começar por seu título, “Sonata”, um modo de técnica para o instrumental clássico, que obedece, em média, de três a quatro movimentos em sua ordem geral, a saber, o primeiro, como sendo o plano predeterminado da exposição, desenvolvimento e reexposição, donde, a posteriori, passa-se a uma cadência mais regular e lenta, e, num outro momento, o terceiro, e culminante, transmuta-se em pulsação mais rápida e liberta, os desvelamentos da musicalidade no poema são entrevistos pela carga original vinculada a palavra “Mar”, ressonância repercutida sobre todos os demais versos, que são harmonizados com esse vocábulo, e surgem, novamente, em “MARavilhoso”, “aMARgos” e “MARulhoso”, por exemplo, sugerindo o som das vagas, assim como de sua quebra, em termos como “comPUNgentes”, ou frases inteiras, representativas do ruído da água, como “Ó mar suPREmo, de FRAGRÂncia CRUa, [...].”
O luar, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
Azul, azul em fora rola...
Cauda de virgem lacrimosa,
Sobre montanhas negras pousa,
Da luz na quietação radiosa.
Como lençóis claros de neve,
Que o sol filtrando em luz esteve,
É transparente, é branco, é leve.
Eurritmia celestial das cores,
Parece feito dos menores
E mais transcendentes odores.
Por essas noites, brancas telas,
Cheias de esperanças de estrelas,
O luar é o sonho das donzelas.
Tem cabalísticos poderes
Como os olhares das mulheres:
Melancoliza e enerva os seres.
Afunda na água o alvo cabelo,
E brilha logo, algente e belo,
Em cada lago um sete-estrelo.
Cantos de amor, salmos de prece,
Gemidos, tudo anda por esse
Olhar que Deus à terra desce.
Pela sua asa, no ar revolta,
Ao coração do amante volta
A Alma da amada aos beijos solta.
Rola, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
O luar, azul em fora, rola...
Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas
Choram todas as cordas do Passado!
Guardas a alma talvez d’um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão às bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.
Quando alta noite, a lua é triste e calma,
Teu canto, vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d’alma!
Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!
III
Em suma, e em termos comparativos, os dois primeiros poemas tratados nessa breve interpretação seguem uma trajetória concomitantemente inversa, uma subjetividade objetiva, isto é, a partir dos elementos de uma poética intrínseca à natureza, como o “Mar”, em Cruz e Sousa, e o “Luar”, em Alphonsus de Guimaraens, o eu-lírico se apresenta, em seu tédio, sem necessariamente adentrar em inquietações metafísicas, diferentemente de como se dá em Augusto dos Anjos, que se utiliza de temas musicais para, em sua objetividade subjetiva, descrever a experiência cognitiva suscitada pela combinação harmoniosa e expressiva do som, ideal de suma importância para a estética simbolista.
REFERÊNCIAS
TEXTOS TEÓRICOS E POESIA
1. ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1998. p. 100.
2. ASSUNÇÃO, R. . Uma leitura polifônica de Cruz e Sousa. Revista Travessia, Florianópolis-SC, v. 1 nº26, p. 103-111, 1993.
3. FRIEDRICH, Hugo. “Perpectiva e retrospecto”. In: Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise M. Curioni. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991. p. 15-34.
4. MOISÉS, Massaud. A Literatura brasileira: o Simbolismo (1893-1902). 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 13-47.
TEXTOS ELETRÔNICOS (POEMAS)
5. “Sonata”, de Cruz e Sousa: http://pt.wikisource.org/wiki/Sonata.
6. “Ária do Luar”, de Alphonsus de Guimaraens: http://www.jayrus.art.br/Sessao_Revisao.htm.