sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Entrevista - Olga Savary


Amigos, sei que o post é longo demais. Porém, peço a vocês paciência e leitura atenta para essa entrevista que é um verdadeiro achado a todos os amantes da poesia paraense.

Divirtam-se!

Brenno Carriço - Editor-Chefe do blog Grupo de Pesquisa EELLIP | UFPA - João Guimarães Rosa: arquivo & debates na Amazônia.

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Por Clauder Arcanjo*

O Olhar Dourado de Olga Savary
(Publicado na Revista de Humor e Cultura PAPANGU nº 40, maio de 2007)

A Literatura é uma dama exigente, não dá descanso.
Ou você entrega a ela toda a sua energia ou ela lhe vira as costas.”
(Olga Savary)


Olga Augusta Maria Savary nasceu em Belém, Pará, aos 21 de maio de 1933, brasileiríssima e amazônida, como bem gosta de deixar claro. Filha única do engenheiro russo de ascendência francesa Bruno Savary e da desenhista e violonista Célia Nobre de Almeida Savary. Do casamento com o jornalista Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe (Jaguar), é mãe dos escritores e artistas plásticos Flávia Savary Jaguaribe (Rio de Janeiro, 11/9/1956) e Pedro Savary Jaguaribe (Rio, 6/2/1958 — 17/5/1999). É prima dos escritores Aníbal Machado, Maria Clara Machado, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Virgínio Santa Rosa, e do compositor e maestro Marlos Nobre. Poeta, contista, romancista, crítica literária e de artes, ensaísta, tradutora e jornalista. Organizadora de antologias e de eventos culturais. Desenhista e ilustradora. Estreou em 1970, com Espelho Provisório (poesia). Olga tem um repertório selvagem, e um baú de trinta e seis prêmios nacionais de literatura (entre estes, dois Jabutis), que reconhecem seu trabalho em poesia, conto, romance, histórias infanto-juvenis, crítica, ensaio, jornalismo literário, tradução e desenho. Uma das fundadoras do Pasquim, exerceu cargos em várias instituições, e gosta sobremaneira de abrir veredas na floresta cultural, “mãe literária” para os curumins da escrita.

Inquieta, viciada em trabalho, Savary não pára. Produz com brasilidade e arte. Raul Bopp declarou: “Seu texto é tão puro, translúcido, arrebata tanto, que a gente nem sente a técnica que o estrutura”. Drummond a chamava, carinhosamente, de Olenka, além de anunciar: “O texto de Olga Savary, a personalidade poética desta escritora e poeta é o que de mais forte eu vi nestes muitos e muitos anos. Ela tem uma inconfundível marca pessoal, que é o que de mais difícil existe num escritor”.

Foi traduzida para países da América Latina, Alemanha, Canadá, China, Dinamarca, Finlândia, França, Espanha, Holanda, Itália, Inglaterra, EUA, Japão, etc. Levei mais de um ano esperando a sua (dela) entrevista. Para se contrapor a uma amazônida perfeccionista, as artes da teimosia de um cearense-potiguar. Pouco a pouco, durante um mês, Savary foi se desvelando, alta onda. Magma, na Linha d´água, em Retratos, Anima animalis, sem Sumidouro. Natureza viva. Ao cabo, valeu a pena.

Confira a seguir a mais completa entrevista já concedida até hoje por esta grande dama da poesia brasileira. Olga Savary revela-se, aqui, em sua plenitude, “o olhar da mulher num mundo moldado por homens, que ela busca transformar com sua ternura, sua sensibilidade privilegiada”, fazendo uso das palavras de Dias Gomes. Uma amazônida vaidosa, guerreira, humana, cheia de tesão pela vida e digna dos louros destes seus longos anos de vida literária. Enfim, vida de paixão e espanto. Berço esplêndido da literatura.

CLAUDER ARCANJO — Em 1936, vinda de Belém, onde nasceu, você, com três anos de idade, e seus pais se mudaram para Fortaleza. Mais tarde, pais e parentes contariam que, já nessa época, você ficava sentada num canto dizendo poeminhas e pequenas histórias que criava. Lembra do primeiro poema que escreveu?

OLGA SAVARY — Encantada com minha solidão de filha única, jamais amaldiçoei minha sozinhez. Um dia ainda escreverei um livro sobre o elogio da solidão que, enquanto escolha própria, considero presente dos deuses e não a coisa má que todos evitam, temem, abominam e falam mal. Que fique claro que estou falando da solidão sem egoísmo, sem isolamento exagerado e pouco solidário. Mas quando sós — desde que de bem com a vida e com a gente mesmo —, é uma harmonia total, pouco conflito, quase o paraíso. Da mãe paraense Célia Nobre de Almeida Savary e do pai russo-francês Bruno Savary, herdei o exercício da liberdade. Apesar de minha solitária circunstância de filha única, jamais fui mimada. Muito pelo contrário: fui criada em osso, como digo de brincadeira (e rir de si mesmo é o que há de melhor e mais saudável), como um soldado, descarnadamente, valorizando o essencial, convivendo com a essência. De pai e mãe, e por conta própria, conquistei o privilégio de ousar, de ser destemida, audaz e independente. Queria ser estóica e sóbria como meu pai, que aparentemente não temia nada nem se entregava a dores ou enfermidades ocasionais, até morrer. Graças a esse pensamento positivo, Bruno Savary viveu saudável até a idade que tenho hoje, sem tropeços com médicos, sem quase fazer uso de remédios. Com este bom exemplo, aprendi a ser uma espécie de auto-pajé. Do ponto de vista emocional, sempre trabalhei minha carência de ser só desde a mais tenra infância. Até porque este é o exercício da dignidade. Não sou sertaneja, mas sou, antes de tudo, uma forte. Procurei preencher o mundo de criança solitária, contemplativa e sonhadora com o observar e o refletir sobre tudo, tentando nomear o que via e sentia através da criação; primeiro imaginando poemas e contos que eu dizia mentalmente, baixinho ou em voz alta, e, depois, colocando no papel, dos nove para os dez anos de idade, quando viemos para o Rio de Janeiro. Era tão introspectiva, vivia em silêncio tão grande que meus pais diziam parecer não ter criança em casa. Os sete anos da infância, passados em Fortaleza (para onde meu pai, engenheiro eletricista, foi chamado a dirigir a instalação de luz elétrica em várias cidades do Norte e Nordeste do Brasil), me deixam à vontade para reivindicar ser “cearense honorária”. Mereço um dia ganhar este título. Em frente à casa onde morávamos, em Fortaleza, residia o desembargador Athayde, pai de Austregésilo de Athayde (presidente, por muitos anos, da Academia Brasileira de Letras). O desembargador foi dos meus primeiros incentivadores quanto aos poemas, historinhas e desenhos. Um dia contei a Austregésilo (já então maduro, com seus setenta anos de idade) que eu, aos oito anos, tinha tido encantamento por seu pai, o desembargador. Ele quase morreu de rir. Foi no Pará que tudo teve início, mas foi no Ceará que desabrochou minha consciência para as coisas da criação, da literatura, na infância mágica lá vivida, tomando sorvete de frutas na Casa Primavera, aluna do Colégio Imaculada Conceição, visitante da Cidade da Criança, freqüentadora da igreja católica do Pequeno Grande, das manhãs na Praia de Iracema, do Farol do Mucuripe, das piscinas naturais de um hotel que se acabou em Maranguape, para onde meu pai me levava nos finais de semana, e eu via a chuva cair em grossas cordas cinzentas no horizonte. Mas as pedras, eternas, mais as árvores, ainda estão lá, testemunhas dessa magia toda. Sou também pernambucana, uma vez que é de Recife a raiz da família materna. Em Recife — em meio a tantas vivências com amigos queridos como Adelaide e João Câmara, Ademilde Miranda, Alex, Clementina Duarte, Déborah e Francisco Brennand, Delano, Eduardo Diógenes, Dolly e Flávio Chaves, Germana e Jaci Bezerra, Guita Charifker, Lourdes Sarmento, Luciano Pinheiro, Lucila Nogueira, Maria Tereza Costa Lima, Orismar Rodrigues, Tereza Costa Rego, Tereza Tenório, Zélia e Ariano Suassuna, e tantos mais — tive um alumbramento: assisti a uma missa celebrada pelo iluminado Dom Helder Câmara, e parecia que a luz divina aclarava a capela. Inesquecível. Sou potiguar, por meu avô materno ter nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Depois radicado no Pará, na pequena Monte Alegre, à beira do rio Amazonas, onde minha mãe nasceu, meu avô farmacêutico (visto como médico na cidade) se firmou e abriu a Farmácia Nobre, e hoje é nome da principal escola: Escola Francisco Nobre de Almeida. Em Natal está enterrado meu filho Pedro Savary Jaguaribe, escritor e artista plástico, morto do coração aos 17 de maio de 1999. Pedro dormiu e “acordou morto”, digo, coisa de mãe que não aceita a morte do filho. Disso quase não falo porque dor tão funda é só da gente e por ser anti-natural filho morrer antes da mãe. Dos dois únicos filhos do casamento em 1955 com o jornalista Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, tenho Flávia Savary Jaguaribe (Flávia Savary, como se assina literariamente, só com o nome e o meu sobrenome), já com sete livros de ficção publicados, um de poesia e duas peças teatrais editadas e premiadas, entre os mais de sessenta prêmios nacionais e internacionais de literatura por ela recebidos, também artista plástica. Amo todos os Estados ligados às minhas raízes, e mais o Rio de Janeiro que me acolheu, todos presentes em meu mais recente livro de poesia Berço esplêndido (Obs: esta entrevista foi publicada antes do lançamento de Anima Animalis - Voz de Bichos Brasileiros, pela LetraSelvagem), livro da paixão pela Amazônia, pelo Brasil. Sou brasileiríssima, embora de origem européia (portuguesa pela via materna; e francesa, russa, alemã e sueca, pela via paterna). Orgulho-me de ter uma bisavó indígena, pelo lado da mãe, ou seja, pertenço ao povo que primeiro habitou nosso país (segundo as antropólogas Maria Beltrão, há quarenta mil anos; e, segundo Niéde Guidon, há sessenta mil), antes denominado Pindorama e depois Brasil. Pertenço aos brasileiros ancestrais. E tenho sangue negro também, como todo bom brasileiro. Viva a soma! Vinda de uma família de escritores, jornalistas, radialistas, tradutores e diplomatas, de ambos os lados, tanto materno quanto paterno — onde somo, como parentes próximos, Aníbal, Carolina, Maria Clara e Paulo Machado, mais Lúcia Machado de Almeida (irmã de Aníbal Machado e cunhada de Guilherme de Almeida), Carlos Drummond de Andrade, Lúcia Nobre, Murilo Mendes, vários escritores da família Meira (dos mais conhecidos, cito o presidente da Academia Paraense de Letras, Clóvis Meira, e Sílvio Meira, poeta, romancista e tradutor de Göethe), Vanede Nobre, o ensaísta Virgínio Santa Rosa (entre seus livros, há um belo ensaio sobre Dostoiévski), o compositor e maestro Marlos Nobre, entre outros —, eu não podia virar outra coisa a não ser escritora, jornalista e tradutora. Está no DNA. Aos nove para dez anos de idade, criei um pequeno jornal artesanal, todo feito à mão, com textos a lápis (poemas, principalmente sonetos e haicais, pequenos contos, pensamentos meus), ilustrados com desenhos também próprios, a lápis de cor. Foi então que ganhei meu primeiro prêmio na vida — de desenho — em um concurso de revista do Rio. O jornalzinho em papel almaço, de oito e, outras vezes, de doze páginas, era vendido a um casal de vizinhos da rua onde eu morava no bairro de Botafogo. Com o dinheiro ganho, mais as aulas de português dadas a meninos mais novos que eu, supria outras necessidades, como a compra de livros de mitologia grega, paixão até hoje. Tendo um espírito crítico feroz, sempre achei ridículo e indigno crianças viverem pedinchando dinheiro e outras coisas aos pais, sobrecarregando-os. Consigo colocar-me na pele do outro e penso ter a obrigação de me tornar leve para quem está perto e ao lado. Por isso tratei, por meus próprios meios, de obter meus extras, uma vez já tendo o essencial dado por meus pais. Em casa, todos trabalhávamos e éramos úteis à nação e à sociedade: pai, mãe e filha. Trabalho é edificante, e eu o exerço desde cedo, desde meus dez anos, do que me orgulho. Meu primeiro poema não foi de amor, como habitualmente acontece com quase todo escritor, foi de ordem filosófica: “O caos”. Poeta que se preza filosofa o tempo todo, refletindo sobre a vida, o universo. Penso mesmo que poesia e filosofia andam sempre juntas, de mãos dadas. Quis publicá-lo quando a Biblioteca Nacional — junto com a editora carioca MultiMais e a Universidade de Mogi das Cruzes, de São Paulo — editou Repertório selvagem, minha obra poética reunida, em 1998. É muito raro ter uma obra editada pela Biblioteca Nacional, é um destaque de merecimento para com o autor, um reconhecimento (eu tenho dois pela BN e um pelo MEC). Esta obra reunida consta de doze livros de poesia (dez publicados e dois inéditos, acompanhados de seus respectivos prefácios e orelhas, assinados por professores e críticos, como Ferreira Gullar, Nelly Novaes Coelho, Jorge Amado, o escritor e professor da Universidade de Harvard, EUA, Joaquim-Francisco Coelho, Antonio Houaiss, Gerardo Mello Mourão, Felipe Fortuna, Dalma Nascimento, Gilberto Mendonça Teles, Olga de Sá, Marília Beatriz de Figueiredo Leite, Marco Lucchesi, Jorge Wanderley, Dias Gomes, Fábio Lucas e Italo Moriconi, entre outros). Porém “O caos” segue inédito, assim como vários outros poemas do meu início. Posso retomar os poemas a qualquer momento ou então abandoná-los de vez. Às vezes vale a “reforma”. Praticamente tudo que escrevi nos dois primeiros anos — tirando o primeiro poema e só por ser o primeiro — joguei fora, atirando na esteira d’água que ia se formando de um navio Ita de Belém para o Rio de Janeiro. Já “salvei” alguns, após muitos anos da data em que foram escritos, reescrevendo-os. Alguns vale reformular; outros não têm jeito. No Colégio Santo Amaro, fui responsável por muito casamento de minhas colegas de classe e as de outras turmas mais adiantadas. Explico: a pedido delas, era eu quem escrevia os poemas de amor, na maioria sonetos, com os quais elas conquistavam os namorados, depois noivos e maridos. Quanto a mim, que me lembre, não conquistei ninguém com poemas, valendo o ditado: santo de casa não faz milagre.

C.A. — Depois que seus pais se separaram, quando tinha apenas seis anos, você ficou com a mãe no Rio de Janeiro, mas, ao completar dezessete anos, voltou sozinha para Belém, onde estudou o Curso Clássico (hoje Colegial). O que a levou a isso?

OLGA SAVARY — Imposições e problemas familiares, mas também saudade e o desejo de voltar a ver minha Belém do Grão-Pará, considerada a capital da Amazônia. Lá fiquei por dois anos, morando na casa de minha madrinha de batismo Hilda Pereira da Silva e sua mãe Alma, em um ensolarado e simpático sobrado da avenida Generalíssimo Deodoro, não muito distante da Basílica de Nazaré. De dia eu estudava e, à noite, escrevia meus poemas e contos, à luz de vela ou quando tinha luar, para que ninguém notasse que estava acordada até de madrugada, montada no telhado da casa. Mesmo com toda essa precaução, vendo uma réstia de luz por baixo da porta do meu quarto, a madrinha ralhava comigo, achando que assim eu estragaria a saúde. Era uma aventura, e sem sair do quarto, prova de que as grandes viagens são imóveis, sumidouros, sumidos ouros, como mergulhos que realizamos para dentro de nós mesmos, igual aos rios que desaparecem terra adentro. Esta metáfora do sumidouro foi a que escolhi para título de meu segundo livro. Mas pergunto eu: como estragar a saúde assim? Existe algo mais saudável do que criar?

C.A. — Em Belém, você foi aluna do jovem Benedito Nunes, que se tornou um dos críticos mais conceituados do País. O que de especial aprendeu com ele?

OLGA SAVARY — Benedito Nunes foi meu professor de Filosofia e Francisco Paulo Mendes, de Português, no Colégio Moderno, dois incentivadores de meus textos e inesquecíveis personagens do meu elenco inicial. Eu era dos últimos alunos em Matemática, Física e Química, nas chamadas exatas, mas sempre fui a primeira da classe em Português e Desenho Livre. Com dezessete anos ganhei meu primeiro prêmio literário em concurso de poesia para alunos do então Clássico e do Científico de todo o Pará. Faziam parte do júri: Benedito Nunes, Francisco Paulo Mendes, e os poetas e críticos Mário Faustino e Ruy Guilherme Barata. Sobre a velha polêmica de chamar escritora que faz poesia de “poetisa”, já nessa época (1951) o esclarecido Benedito Nunes insistia na denominação “poeta”, e assim se referiu a mim sempre. Benedito, pouco mais velho que seus alunos e com a cara de garoto que tem até hoje, se impunha pelo saber e pela dinâmica serenidade com que nos ensinava. Vive até hoje em Belém, embora sempre convidado a dar aulas nas universidades européias e norte-americanas. Nos verdes anos da adolescência, estes dois professores foram fundamentais na minha vida, no meu aprendizado, verdadeiros mestres, e a eles sou grata por tudo que me ensinaram de conhecimentos e sabedoria, além de grande humanidade. Inesquecíveis foram também meus professores de Física (Djalma) e de Química (Maria Anunciada Chaves, diretora do Colégio Moderno, e hoje membro da Academia Paraense de Letras), por terem sido compreensivos com as notas baixas nas exatas, em que eu era fraca e eles sabiam que nunca seriam as “minhas áreas”, e deixarem-me passar de ano assim mesmo. A eles sou grata também por terem sido esclarecidos e tido o bom senso ao afirmarem: “Essa menina é a melhor em Português e Desenho, sempre com 9,5 e 10, com louvor, com certeza vai ser escritora ou artista”.

C.A. — Desde o seu primeiro livro de poesia, Espelho provisório (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1970), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, você é um nome nacional; entretanto, mesmo morando há sessenta e três anos no Rio de Janeiro, nunca deixou de se assumir como paraense. O que a liga à Amazônia, além do fato, claro, de ter nascido em Belém?

OLGA SAVARY — Foi um privilégio ter meu primeiro livro editado pela maior editora que este país já teve, a José Olympio, possuidora então de todos os fundamentais nomes da nossa literatura, dos nossos clássicos: Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e tantos mais. A Casa, como era chamada, fazia bons livros, bem cuidados, distribuía-os e os divulgava por todos os Estados brasileiros e também no exterior. Autor que fosse aceito e bancado pela J.O. já estava com meio caminho andado. Quem levou meu livro para a J.O. foi Elizabeth Lins do Rego (filha de Zé Lins do Rego e que eu tinha conhecido no Centro de Estudos Jung, no escritório da Dra. Nise da Silveira — que freqüentei desde a década de 60 até a de 90 e tantos, quase quarenta anos, até o falecimento de Nise —, onde estudávamos em grupo psicologia junguiana, freudiana, mitologias e assuntos afins). Betinha, como Elizabeth carinhosamente é chamada, disse-me que o fato de levar meu livro não significava a aceitação do mesmo, a comissão de leitura iria examinar e mais tarde daria o parecer positivo ou negativo. Passados quinze dias, me ligam para casa, declarando que iriam fazer Espelho provisório (bons tempos, porque hoje levam meses, até anos, para dar uma resposta). É justo, portanto, considerar Betinha a madrinha de meu primeiro livro. Lancei Espelho provisório (título escolhido como metáfora da vida, onde tudo é sempre breve e provisório) em dezembro, pouco antes do Natal, entre os grandes autores da Casa, os citados acima e outros mais, cada um na sua mesa, e eu também numa mesa individual, com toda a pompa e circunstância, sem qualquer distinção entre autores consagrados e eu como estreante. Lembro que eram uns vinte e todos vieram fraternalmente até minha mesa cumprimentar-me pela estréia em livro. Bem excitante e mágico para alguém em sua primeira noite de autógrafos. Por ser o mais jovem dentre todos os autores, eu era chamada carinhosamente na J.O. de “mascotinha”. Depois recebi cartas desses autores desejando-me sorte, entre elas uma carta-crítica, calorosa e cheia de elogios, do poeta Cassiano Ricardo. A crítica e a imprensa foram unânimes em elogiar meu primeiro livro, o que facilitou a editoração dos que se seguiram, hoje somando dezoito pessoais. A J.O. inscreveu Espelho provisório e, poucos meses depois, me informou que eu teria de ir a São Paulo receber o Jabuti. Daí eu disse: Jabuti? Nunca tive bicho na vida e não vai ser agora que vou achar justo prender animal em apartamento. Custei um pouco a entender que Jabuti era um prêmio, ri muito, caímos nós na gargalhada, eu e o pessoal da editora, porque, até então, o nome pra mim só designava o bicho. Ganhei o Prêmio Jabuti Revelação de Autor da Câmara Brasileira do Livro, uma engraçada estatueta de bronze, tendo no casco as letras do alfabeto, e mais uma bela gravura de artista japonês de São Paulo, na cerimônia da entrega dos prêmios no Círculo Italiano de Cultura, no Edifício Itália, o mais alto da capital paulista, em magnífico jantar, verdadeiro banquete. Este foi meu segundo prêmio literário, e o primeiro Jabuti. Anos depois eu receberia outro Jabuti — já então sem estranheza da minha parte — e mais adiante a indicação para Berço esplêndido, em 2001 (entre autores como Cecília Meireles, Manuel Bandeira e outros nomes fortes). Desde o início, em 1943, meu texto foi saudado como “ecológico, de extrema brasilidade, preocupado com natureza, água, meio ambiente”, assuntos hoje em pauta, desde o século XX até este 3º milênio. Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Lúcio Costa, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Tom Jobim, Rubem Braga e Vinícius de Moraes, meus amigos, reconheceram esta brasilidade. Integro mais de quinhentos livros coletivos, organizados por mim ou por outros autores, incluindo dicionários e enciclopédias de escritores no Brasil e exterior, antologias brasileiras e estrangeiras de poesia e conto, etc., como: Dicionário de Escritores (Rio de Janeiro, MEC, 1988); Enciclopédia de Literatura Brasileira (Rio, Academia Brasileira de Letras/Global, 2001), organização do professor e acadêmico Afrânio Coutinho; Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss, organização de Antonio Houaiss (Rio, Delta, 1997); Dicionário de Mulheres, organização da professora Hilda Hübner Flores (Porto Alegre, Nova Dimensão, 1999, já em 2ª edição); Os cem melhores contos brasileiros do século e Os cem melhores poemas brasileiros do século, organização do escritor e professor da UERJ Italo Moriconi (Rio, Objetiva, 2000); Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, organização da professora da USP Nelly Novaes Coelho (São Paulo, Escrituras, 2001), entre outros. Há citações de minha obra em vários livros didáticos, organizados por professores da 8ª série do 1º Grau, do Vestibular, e também teses de Mestrado e Doutorado de professores da UFRJ, da USP (professora Claudia Pastore) e da Universidade de Nápoles, Itália (professora Maria Longobardi), entre outros. Apresentações e prefácios meus integram cerca de mais outros quinhentos livros de poetas e ficcionistas, tantos que já perdi a conta. Tenho trabalhado ao longo da vida obsessivamente, tendo um currículo que vai da letra A até a letra Z. E fazendo o possível para ajudar outros autores com menos experiência literária. Professores e críticos estimam que, embora autodidata, uma vez que não concluí faculdades iniciadas, o que realizei nestes mais de sessenta anos de ofício valeria por Mestrado, Doutorado, Pós-doutorado, e que tenho um currículo que muito professor acadêmico gostaria de exibir. PhD, portanto, ou aquilo que o meio acadêmico denomina de “notório saber”. Drummond, Gilberto Freyre, Houaiss, Jorge Amado, Manuel de Barros e outros escritores surpreendiam-se e se surpreendem com minha capacidade de trabalho, dizendo: “Savary trabalha mais que uns vinte homens juntos.” Toda vez que me chamaram de carioca eu rebatia ser paraense (paraoara, como dizem os primeiros brasileiros, os indígenas, em seu nheengatu ou “língua boa”). Adoro o Rio, admito até ter adquirido uma certa “carioquice”, nos sessenta e três anos em que vivo nesta cidade deslumbrante, mas sou de fato uma amazônida. Não se sai impune do fato de ter nascido na Amazônia. É como se fôssemos marcados a ferro e fogo, marca indelével. Possuímos uma floresta ardendo dentro de nós, uma mata erótica chamejando o tempo todo, magma nos abrasando e do qual nos orgulhamos. Não conheço um paraense que não morra de orgulho de ter nascido naquele chão. Sou um desses. E é por ter nascido nessa exuberância, nesse extravasamento da natureza que me tornei pioneira em escrever, segundo a crítica, o primeiro livro de poesia todo em temática erótica no Brasil. Talvez não o tivesse feito se tivesse nascido em outra região. Mas na Amazônia... é natural.

CA — A crítica aponta você como precursora do lançamento de poema haicai no Brasil. Por outro lado, por parte de pai, você vem de uma família de Smolensk, cidade da Rússia. Liev Tolstoi refere-se ao patronímico Savary em Guerra e Paz, assim como também a Enciclopédia Britânica. Além disso, você traduziu quatro livros de haicais. Por que se sente tão ligada ao Oriente?

OLGA SAVARY — A crítica e os haicaístas sempre me consideraram pioneira, a primeira mulher a escrever haicai no Brasil, e também como a principal e mais assídua tradutora dos mestres japoneses deste gênero poético. Já se encontram editadas três traduções minhas: O Livro dos Hai-kais: Bashô, Buson e Issa (duas edições em 1980), Sendas de Oku, de Bashô (duas edições em 1980) e Hai-kais de Bashô (em 1989) e tenho pronta uma quarta tradução com os japoneses acima citados e mais outros que pesquisei e reuni em livro, a sair. Sempre divulguei em congressos brasileiros e no exterior o haicai japonês e o haicai brasileiro. Por quê? Por entender que o haicai traduz a poesia da maneira mais sintética e profunda a um só tempo. A Poesia ama a síntese. Aprendi a amar a poesia oriental com dois tios maternos, escritores, jornalistas e tradutores: Lourival e Cícero Nobre de Almeida. Lourival, em 1930, foi convidado pelo governo japonês a visitar o Japão. Falando e escrevendo na língua desse país, no retorno ao Brasil escreveu o livro que conta esta experiência: O Japão antigo e moderno, editado pela José Olympio. Ele foi quem, permitindo que eu usufruísse de sua extensa biblioteca, me introduziu na cultura japonesa e na arte do haicai. Daí a me sentir mais oriental do que ocidental foi um passo. Até porque o Oriente tem mais anos de civilização, mais sabedoria do que nós. Sinto-me, em muitos aspectos, mais oriental que ocidental. Aprendi com japoneses a controlar emoções, evitando excessos de tristeza e de alegria, que levam a desarmonias psicológicas. Excessos levam até a doenças, e são muitas vezes ridículos e de escassa dignidade. Sem perder a emoção, naturalmente. Ou seja, bom sempre é a harmonia, o caminho do meio. Fora os olhos puxados, que não tenho, às vezes considero-me uma japonesa — e uma holandesa, por causa de Maurício de Nassau, que deu tanto ao Brasil, enquanto outros só tiravam. Então, sou amazônida e ao mesmo tempo cidadã do mundo. Em 1984, fui convidada a abrir a I Semana do Japão, proferindo a palestra “Hai-kai, a poesia clássica japonesa”, no auditório da Associação Comercial do Rio de Janeiro, realizada pelo Consulado Geral do Japão, Câmara do Comércio e Indústria Japonesa, e Instituto Cultural Brasil-Japão. No final da palestra (onde me apresentei de quimono japonês autêntico e tudo, homenageando os representantes da cultura nipônica), fui cumprimentada pelos assistentes, na maioria empresários do Japão, e estes me agradeceram por aprender sobre a poesia de sua terra. Ainda em 1984, fui convidada pelo cônsul e pelo adido cultural do Consulado do Japão no Rio a visitar o País do Sol Nascente pelo tempo que eu quisesse e, caso fosse estudar mais sobre o haicai, poderia até passar um ano, com tudo oferecido e com um intérprete, essencial lá. Por razões familiares, problemas de saúde de meu filho, infelizmente na ocasião não pude aceitar. Não sou apaixonada por viagens, como todo mundo é, mas esta viagem era meu sonho. Em 1986 lancei livro com cem haicais, parte publicada em outros livros e parte inédita, capa de Sun Chia Chin, edição de Roswitha Kempf. Em 1989 lancei outro de haicais inéditos, prefaciado pela professora Dalma Nascimento, capa de Wakabayashi, e editado por Massao Ohno, editor de vários livros meus e responsável neste Retratos pela escolha das ilustrações: desenhos de Matisse. Tenho mais três livros de haicais, prontos, esperando edição. Em dezembro de 1986, abro o I Encontro de Hai-kais, no Centro Cultural São Paulo, a convite da Fundação Japão e do Jornal Portal, com a palestra “Hai-kai e Cultura Japonesa”, sendo jurada do concurso haicaísta então instituído. Destes Encontros de Hai-kais participo, dando palestras sobre poesia japonesa, Bashô, Buson, Issa e outros clássicos haicaístas japoneses, sendo também jurada dos concursos, durante cinco anos, tempo de sua duração. E sempre homenageada como a precursora em escrever e divulgar o haicai no Brasil.

C.A. — Escreve em português, claro, mas é comum encontrarmos em seus textos palavras e expressões da língua tupi. Isso pode ser visto como a sua forma própria de declarar amor pelas coisas e gentes do Brasil? Como é assumir a brasilidade num país que, muitas vezes, se envergonha de si mesmo?

OLGA SAVARY — Que cada um cumpra a sua parte. Amo o Brasil, orgulho-me de minha terra e meu povo, minha gente. Desde menina, por ter uma bisavó indígena pelo lado da família materna — e também por ter me apaixonado por um tuxaua — sempre utilizei palavras em nheengatu, a língua boa dos primeiros brasileiros. Na verdade é meu modo brasileiro de declarar amor a tudo o que é nosso, como fazem Aldemir Martins, Ariano Suassuna, Darcy Ribeiro, Nicodemos Sena, Rondon, os irmãos Villas Boas, Tom Jobim, Villa-Lobos e tantos outros brasileiros admiráveis. A voz destes soa mais alto do que a voz daqueles que se envergonham de si mesmos, que não têm a devida auto-estima. Pior para eles, que se desqualificam diante desta nossa nação tão rica e poderosa.  E são tão bem soantes e sedutoras as palavras em tupi, língua que foi falada no Brasil até meados do Século XVIII, junto com o português. Daí veio o Marquês de Pombal se meter onde não foi chamado e a proibiu de ser falada em nosso território nacional. Podíamos passar sem essa, não é? Mas ficaram muitas e muitas palavras do idioma tupi na nossa língua portuguesa do Brasil, a lhe dar um toque encantador. E os costumes? Nossa mania de banho é herança indígena, não européia, com certeza. Só acho que poderíamos aprender mais com essa brava raça, que respeita o velho e a criança, e não faz questão de poder, que reverencia a natureza como coisa sagrada, e preserva o meio ambiente. Quem é mais “civilizado”, portanto, nós ou eles?

C.A. — No poema “Nheengare-i” (do tupi, cantiguinha), dedicado ao poeta Carlos Drummond de Andrade, há esta estrofe: “Curumi, catar pitangas/ de outubro a dezembro,/ rir de tudo, rir do vento,/ declarar todas as gírias./ Menino, falar tupi”. Também inspiraste CDA a escrever um poema (“Miragem”, ver quadro). Além da amizade e do parentesco que te unia a Drummond, qual a importância dele na definição da sua poética?

OLGA SAVARY — Drummond influiu em toda uma geração de poetas brasileiros. Todos nós devemos alguma coisa a ele, ao Modernismo, à Semana de 22, sem esquecer tudo o que veio antes. Passei um tempo diminuindo e a duras penas aprendi que o importante na vida é a soma. Não importam os ismos, apenas importa o que é bom, seja de que escola for. Como todos, devo muito a Drummond, como devo tributo a qualquer grande poeta. Com ele, especialmente, trocava conhecimento, informações. Trocávamos figurinha, como se diz no popular. Havia entre nós troca de presentes nas datas especiais, tipo aniversário, troca de poemas (como este “Miragem”, escrito em 1955, dedicado à prima Olenka, que é o diminutivo de Olga em russo, como eu assinava quase à guisa de pseudônimo no início, e como CDA carinhosamente me chamava). Um dia ele me disse que tínhamos uma amizade típica de primos, de primos que se amavam. Disse-lhe que era uma amizade-quase-amor. “Amizade coisa nenhuma, isto é amor!” — retrucou ele, categórico. Esta ocorrência, com mais detalhes, está registrado no livro Os sapatos de Orfeu: biografia de Carlos Drummond de Andrade, de José Maria Cançado. Mas tudo ficou no plano platônico, embora com muita intensidade.

C.A. — A partir de Magma, seu quinto livro de poesia (1982), e de Carne viva: 1ª Antologia Brasileira de poesia erótica (1984), que você organizou, alguns a rotularam de “poeta do erotismo”. O que pensa disso?

OLGA SAVARY — É um fato, não há como negar o pioneirismo em escrever haicais, o ter sido precursora em utilizar palavras em tupi, em realizar o primeiro livro todo em temática erótica no Brasil, e ainda organizar a primeira antologia de poesia erótica (com setenta e sete poetas de todo o País, onde consta até um poema especialmente feito por Mario Quintana, a meu pedido, como “dever de casa”, por ele que jamais escreveu um poema erótico). Como antologista, a primeira que fiz foi a erótica, por ser tema de minha especial predileção. Desde o início, em 1943, trabalhei com erotismo, embora de maneira mais velada. Nesta antologia estão presentes os mais representativos poetas contemporâneos, de todos os Estados brasileiros. Do Rio Grande do Norte, incluí Nei Leandro de Castro, o poeta potiguar mais conhecido no Sul, até porque nessa época ele residia no Rio de Janeiro. Surpreendeu-me o fato de que, tendo participado de Carne viva e sabendo, como é do conhecimento geral, que sempre trabalhei com erotismo, tendo a crítica saudado meu Magma como o primeiro livro todo em temática erótica escrito no Brasil, não tenha ele mencionado tudo isso na entrevista dada à Papangu. Em 1988 a Bienal Nestlé me chamou para proferir palestra sobre erotismo, depoimento e leitura de poemas e contos, em São Paulo. E para vários outros congressos brasileiros e estrangeiros fui chamada para falar sobre este tema. Por toda a minha trajetória, minha história de vida contada no início desta entrevista, procurei nunca ter medo de nada. Medos, é claro que se tem. Muito cedo perdi tudo o que outros têm até tarde: perdi mãe com dezessete anos e pai com vinte e sete. Foram baques traumáticos. Mas sou uma incorrigível otimista, votada à alegria, minha palavra-chave. Dei a volta por cima e esforcei-me em ser meu próprio pai e mãe, o que foi duro, mas me fortaleceu. Enquanto homens não tinham coragem de publicar nada erótico, eu enfrentei e fiz um livro pessoal e um coletivo nesse tema — e, veja, quando não era moda. Até Drummond levou anos para assumir sua poesia erótica. No início, só permitiu uma edição mínima de apenas três exemplares (com alguns poemas, não a produção erótica toda): um para ele próprio, outro para o ilustrador (o poeta e editor pernambucano Gastão de Holanda, então já residente no Rio, com a especial diagramação de Cecília Jucá) e o terceiro para José Mindlin (bibliófilo, colecionador de livros desde adolescente, possuidor de uma das mais importantes — senão a mais importante — biblioteca do país, empresário e hoje membro da Academia Brasileira de Letras, que tornou possível esta edição). Assim, considero um elogio reconhecer meu pioneirismo em escrever poesia erótica, a atitude audaciosa de publicar Magma e Carne viva. Até porque erotismo é fundamental, erotismo é o divino no humano, erotismo é vida. Só acrescentaria que falar sobre este tema é fazer o discurso da falta. Se a gente vivesse o erotismo completamente, não carecia escrever um só verso ou texto erótico.

C.A. — Você fez outras antologias depois, bastante apreciadas pela crítica e bem divulgadas pela imprensa de todo o País. Por que organizar antologias e que satisfação isto lhe dá?

OLGA SAVARY — Após a primeira antologia de poesia erótica, denominada Carne viva, editada em 1984, pela editora carioca Ânima (do escritor e professor de Literatura Brasileira Júlio César Monteiro Martins, atualmente lecionando na Itália), realizei outras duas. A segunda, Antologia da nova poesia brasileira (de poesia social, com trezentos e trinta e quatro poetas brasileiros, cuja organização me foi encomendada pela Secretaria de Cultura e Prefeitura do Estado do Rio de Janeiro, editada em 1992 pelos órgãos acima citados, em co-edição com a editora carioca Hipocampo), foi considerada pelo escritor e professor Affonso Romano de Sant’Anna (então presidente da Biblioteca Nacional) e pelo professor, enciclopedista e membro da Academia Brasileira de Letras Afrânio Coutinho a maior e mais completa antologia de poesia brasileira até então. O nome do livro foi dado pelo órgão cultural RioArte, pertencente à Secretaria de Cultura e Prefeitura do Rio de Janeiro, no qual trabalhei de 1984 até 2000. Eu teria preferido outro título mais de acordo com esta antologia, talvez Os filhos da ditadura, uma vez que nela incluí aqueles que viveram, sofreram e produziram nos chamados “anos de chumbo”. Há poemas-depoimentos tocantes nesta antologia pós-1964. A terceira foi Poesia do Grão-Pará, um sonho antigo, desde a adolescência, que levei cinqüenta anos para completar, desde a pesquisa inicial em 1950 e que só foi finalizada e editada em 2001, com mais de quinhentas páginas. São duzentos anos de poesia amazônida, com cento e dezessete poetas do Pará e de outras localidades mas que lá se radicaram. Assim, o título deveria ser Poesia da Amazônia, seria mais abrangente e mais de acordo com o trabalho realizado. Mas eu quis privilegiar no título o meu Estado, o Pará. A encomenda partiu do prefeito Edmilson Rodrigues, quando este me convocou a Belém para homenagear-me como “paraense ilustre”, em comovente cerimônia no Palácio da Prefeitura. Sabedora de que o prefeito tinha começado uma reunião política com poema meu e de que ele era apreciador de poesia, falei-lhe deste meu projeto antigo, da antologia que eu realizava há tantos anos. Arquiteto e com sensibilidade vibrante para assuntos de cultura, Edmilson topou de imediato. Vários paraenses me asseguraram, após o livro pronto, que este foi o grande orgulho do prefeito, considerando a mais sólida obra de seu governo na área cultural. Fiquei recompensada pelo reconhecimento da minha terra. Esta terceira antologia que fiz foi editada pela Graphia, com capa do artista plástico paraense Aluísio Carvão, orelhas de Benedito Nunes e apresentação do próprio prefeito. Tudo paraense, portanto, tudo amazônido, fiz questão, e as escolhas foram todas minhas (exceto a editora e o melhor diagramador do Rio, Victor Burton, ambos cariocas, porque assim o livro teria mais divulgação e distribuição adequadas à sua importância). Fiz tudo neste livro, inclusive cinco revisões, linha por linha — e sozinha. Por conta de todo este perfeccionismo, fiquei à beira de uma estafa. Os paraenses afirmaram não haver um erro sequer. O lançamento deu-se no belo Palácio da Prefeitura, no centro histórico de Belém, tendo durado mais de cinco horas a tarde e noite de autógrafos, sem tempo sequer de eu tomar um gole de vinho ou água, tal o fluxo de gente. Revi amigos e fiz amigos novos. Fiquei exausta, mas feliz. A professora da USP Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo veio especialmente de São Paulo para saudar-me e fazer a apresentação da antologia Poesia do Grão-Pará. Marleine Paula há anos é especialista em minha obra, tendo editado em Portugal ensaio sobre meus dez primeiros livros, sob o título A voz das águas: uma interpretação do universo poético de Olga Savary (Lisboa, Editora Colibri/ Universidade de Coimbra/Unicid, 1999, que recebeu o Prêmio APCA para Ensaio no Teatro Municipal de São Paulo). Mas o que é organizar antologias, qual é minha motivação? Em primeiro lugar, um ato de amor com o trabalho do próximo. E um ato de humildade. É o gosto de servir, como sugere aquela frase: quem não vive para servir, não serve para viver. A gente deixa de olhar só o próprio umbigo e vai se debruçar sobre o trabalho dos colegas, vai mostrar ao País a boa poesia e a boa ficção que se faz em todo o território nacional. Já descobri muito bom poeta assim, desde alguns já conhecidos e tantos outros “descobertos” por mim, que talvez não pudessem se mostrar e conquistar um público de maior alcance, embora merecedores. É uma alegria descobrir bons poetas por estes brasis. É um trabalho árduo, leva tempo (gastei dez, cinco e cinqüenta anos respectivamente em cada uma das três antologias, roubando tempo e disponibilidade para a minha própria obra), e praticamente não ganhei nada com isso; pelo contrário, até gastei tempo e dinheiro. Porém gosto de tudo o que faço e realizo com gosto. A boa poesia me dá prazer, venha de onde vier, não importa se minha ou de outros. Mal comparando, considero realizar antologias como uma espécie de meditação, um meditar sobre a poesia. Psicologicamente, me faz crescer: deixo de ser filha para virar uma espécie de mãe de todos aqueles poetas. Vale a pena se a alma não é pequena, como diz Pessoa. Como já tenho a tranqüilidade de ter escrito e publicado dezoito títulos, quase todos premiados, e com mais onze livros meus esperando vez (três de poesia, um de contos, um romance, três histórias infanto-juvenis, três de ensaio e crítica), posso dar-me ao luxo de continuar organizando antologias. No momento, preparo várias, algumas de poesia dos Estados: Poesia de Pernambuco (que pesquiso e organizo desde 1971), Poesia do Ceará, Poesia de Minas Gerais e O Conto da Amazônia. E mais outras, com temáticas. Nove ao todo. Trabalho muito, mas devagar. Devagar e sempre. Um dínamo, incansável operária da cultura, como dizem os professores da USP que acompanham minha trajetória, como Carlos Felipe Moisés, Marleine Paula, Nelly Novaes Coelho e outros. Não posso viver sem o trabalho, ele é o ar que respiro, é o meu sagrado, minha religião. Sou inquieta, gosto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Se sei fazer e consigo me disponibilizar, por que não? Sempre digo que não tem tempo é quem não faz; quem muito faz, cada vez inventa mais tempo.

C.A. — Por volta de dez anos, já no Rio de Janeiro, você criou um jornalzinho mensal, cuja tiragem era de um único exemplar, feito à mão e vendido a um vizinho que a incentivava; desde então ganha a vida exclusivamente com o labor de escritora, jornalista, crítica e tradutora. Num país de poucos leitores e onde a escrita quase sempre é entendida como hobby para escrevinhadores de fim de semana, como é viver da Literatura?

OLGA SAVARY — Sou uma profissional dentro da “marginalidade” que é a poesia e a literatura de modo geral, a cultura como um todo neste nosso Brasil tão vilipendiado, tão colonizado ainda. Sou feliz porque faço o que sei, e adoro o que faço. Porém vivo monasticamente, só com o essencial, nenhum supérfluo, o que acho ótimo, porque abomino o consumismo cego da maioria que vive acima de suas posses e sem um escopo na vida. Olhar só para o lado material das coisas é de uma pobreza espiritual atroz. Sinto-me fora disto. Sou do lado do ser, não do ter. Porém, embora atuando na área mais nobre do País, a mais respeitada, a que dá a face real de qualquer nação, é penoso viver da área de Cultura, todos nós sabemos. Faço a minha parte, mas o País devia fazer a dele, remunerando à altura. É injusto e uma lástima que isto não seja feito. Sempre sobrevivi de dar aulas, de escrever artigos para jornais, revistas e suplementos literários, de dar palestras sobre minha obra e sobre literatura em congressos no Brasil, no exterior, e em universidades nacionais e estrangeiras, com tudo pago e mais o cachê, de fazer apresentações e prefácios para ficcionistas e poetas, para editoras, de algumas vezes escrever para publicidade, etc. Já fiz de tudo na vida em matéria de literatura. Tive uma editora na década de 70, Codecri, ligada ao semanário O Pasquim, do qual fui fundadora com mais seis jornalistas, em junho de 1969, nele criando a seção mais lida, “As Dicas” (notícias de várias áreas da Cultura), traduzindo e participando das entrevistas. Há quarenta anos preparo livros para outros autores, que não querem se preocupar com a organização da divisão de texto, com títulos internos e de capa, mais a ordem gráfica do livro. Sobrevivo fazendo tudo isso. Tomei parte em júris de poesia, ficção, música e carnaval. No carnaval do Rio de Janeiro, e também em São Paulo, participei oito vezes como jurada das escolas de samba do primeiro grupo. Sou tradutora desde cedo, com mais de cinqüenta títulos no currículo, feitos para as maiores editoras. Traduzi onze livros de Neruda e oito de Octavio Paz, sendo a principal tradutora destes dois Prêmio Nobel. E também, Borges, Lorca, Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Cortázar, Semprún, até um diário de guerrilha de Che Guevara. Tudo isso profissionalmente.

C.A. — Quando, em 1996, você concorreu a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), já produzira uma obra admirável, em número e em qualidade, reconhecida pela própria Academia, que já lhe premiara por quatro vezes (em poesia, por Magma, que ganhou o Prêmio Olavo Bilac 1982; pelo livro As margens e o centro, de artigos de crítica, ensaio e jornalismo literário, com o Prêmio Assis Chateaubriand 1987; um prêmio para livro de contos inéditos, em 1988; o Prêmio Odorico Mendes para tradução; e mais a indicação ao Prêmio Machado de Assis para Conjunto de Obra). Mesmo contando com o apoio de escritores como Jorge Amado, Antonio Houaiss, Ariano Suassuna, Arnaldo Niskier, Carlos Nejar, Darcy Ribeiro, Dias Gomes, Eduardo Portella, Francisco de Assis Barbosa, entre outros, terminou sendo eleito o discreto Tarcísio Padilha. Afinal, o que é preciso para alguém se eleger para a ABL? Pensa em se candidatar outra vez?

OLGA SAVARY — Diversas vezes fui questionada, e até convidada, por esses e por outros amigos da ABL a me candidatar. Ocorre que sempre tive o maior rigor e exigência comigo mesma. Primeiro, eu não pensava na ABL. Depois, só ia me candidatar ao ter pelo menos dez ou doze livros, uma obra sólida. Não estava satisfeita em ter apenas cinco livros, achava pouco, queria mais. E era necessário cumprir um ritual: visitar todos os acadêmicos. Não o fiz, logo eu tão afeita a rituais. Falhei, pelo fato de trabalhar em demasia, dezoito horas diárias, e ingenuamente supondo que a obra falaria por mim. Com o tempo, infelizmente, alguns desses queridos e admirados amigos foram falecendo, e eu me pensei sem apoio. Tarcísio Padilha, meu vizinho na rua Sá Ferreira, em Copacabana, candidato há mais tempo, cumpriu tudo o que a Academia esperava, e ganhou. Visitei-o em sua casa, como manda o ritual, conheci sua família — esposa Ruth, filhos e netos — e não estava triste nem decepcionada. Disse a ele: a gente só concorre consigo mesmo, tentando o aprimoramento a cada dia. É nisso que acredito, tenho e dou fé. Quem sabe não volto a me candidatar, o tempo dirá. Por enquanto ainda trabalho demais, apaixonadamente, apesar de meus setenta e três anos de idade (para meu ofício, sou muito jovem). Tenho uma postura digna de tarefas cumpridas e de vida bastante severa e serena. Não tenho e nunca tive pressa, não sou ansiosa, detesto ansiedade. O que tiver de ser, será. E digo que, embora sozinha por escolha, a ABL para mim hoje significaria ter uma grande família. Lá tenho queridos amigos antigos e faria outros novos. Para a Academia seria útil ter-me em seus quadros: sou boa organizadora de livros e de eventos, já realizei muito na área de Cultura e tenho uma grande experiência de vida e de fazer literário.

C.A. — Quais os autores que mais a influenciaram ao longo de sua obra literária? Alguns destes ficaram, após o passar dos anos, no meio do caminho, não resistindo ao tempo?

OLGA SAVARY — Falemos primeiro dos nossos clássicos brasileiros, já que sou uma nacionalista ferrenha e apaixonada. Lembro os primeiros que me encantaram na infância: Castro Alves, Gonçalves Dias, José de Alencar. Depois vieram Manuel Bandeira e Charles Baudelaire, meus poetas preferidos na adolescência. E Drummond, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Cornélio Pena, João Cabral, Graciliano, Zé Lins do Rego, Augusto dos Anjos, e o bruxo Machado de Assis (principalmente pelo humor), entre muitos outros. Foram mestres a ensinar, não propriamente influências, mas isto já é assunto para a crítica. Estes não ficaram para trás, continuam comigo, porque são muito bons. Não citarei os colegas, contemporâneos, por motivos óbvios, posso esquecer nomes importantes, e não é justo citar alguns poucos; por outro lado, se citar muitos da minha especial admiração, vira catálogo telefônico. Dizem-me generosa em relação ao texto dos outros, mas o fato é que temos muito bons autores no Brasil. Tem muito equívoco também, gente que se pensa escritor e nem chega na fímbria do desfiladeiro, como digo num poema, não arrisca, não se dedica, não tem paixão (daí penso: coitadas das árvores, que dão a celulose para o papel onde escrevemos. Assim, quanta vida vegetal sacrificada, desperdiçada, jogada fora). Defendo que temos, hoje, poetas e ficcionistas admiráveis em todos os Estados brasileiros, e posso afirmar porque sei, conheço, pelo meu trabalho como antologista. Dos estrangeiros, a grande paixão, desde a entrada na adolescência, foi Dostoiévski, excepcional romancista e pensador, que influencia tudo o que veio depois dele, tendo escrito aquela obra colossal até os sessenta anos de idade, atormentado pela epilepsia, a jogatina, o exílio na Sibéria e uma pena de morte suspensa na última hora. Mais todos os maravilhosos russos do Século XIX. Meu pai russo, ao ver-me aos doze anos tão apaixonada por esse escritor russo-universal, declarou-me imatura para entender Dostoiévski. Disse-me mais: que as traduções davam uma pálida idéia do que era o original. Bem posso imaginar. Bruno Savary tinha lido no original; eu, em traduções brasileiras (por sua vez, traduzindo de outra língua, geralmente do francês, e as traduções francesas são tidas como não muito fiéis) e ainda assim foi um alumbramento. A descoberta de poetas americanos — Emily Dickinson, Langston Hughes, Mariane Moore, e vários outros que constam de uma antologia que Drummond me deu em 1955, editada pelo MEC, traduzidos por nossos maiores poetas, uma espécie de Bíblia para mim, e o talvez preferido T.S. Eliot — foi outro alumbramento. Por que Eliot é o preferido? Porque é estimulante, me faz ficar com as mãos inquietas, loucas por escrever.

C.A. — O mundo moderno assiste à invasão dos lares e das cadeiras de leitura com novas formas de interatividade com o mundo das letras e da imagem — internet, TV a cabo, comunidades virtuais, etc. Como ficam a literatura e o autor perante isso? Aderir, combater ou aliar-se?

OLGA SAVARY — Tudo é válido para quem quer e se adapta. Pessoalmente não gosto de máquinas, não tenho internet, TV a cabo, e-mail, fax ou celular, e nem pretendo ter. Detesto essas coisas que só vejo afastar e estressar as pessoas. Aparentemente aproxima, mas não passa de “ejaculação precoce”, como costumo dizer. Os amigos riem dessa irônica definição minha, porém acabam concordando. É uma verdadeira ditadura de máquinas — e eu não tolero nenhum tipo de ditadura. Sou obrigada a utilizar computador porque sou profissional de Letras, mas já tive uma tradução inteira, solicitada pela editora Objetiva, que foi para o espaço, perdi quatro a cinco meses de trabalho em 2006. Fiquei desolada e tive de refazer tudo em um mês. Por pouco não morri de estafa, virando noites e noites sem dormir, além dos dias, é claro, para cumprir o prazo contratado com a editora. Quase todos os amigos relatam fatos semelhantes. Mas não posso negar as vantagens do computador. Pelo menos as terríveis dores nas costas, que eu tinha ao fazer trabalhos nas máquinas não elétricas, melhoraram, o que já é uma bênção. Os professores que trabalham com a “genética do texto” é que não gostam do computador, porque este acabou com as correções feitas à mão e tudo o mais, tão elucidativas para entender o autor e o nascer de uma obra. Sou dos raríssimos escritores que ainda escreve primeiro à mão, depois é que vou para a máquina, coisa impensável hoje em dia.

C.A. — E o seu exercício do conto? Há mudança na sua escrita quando migra da poesia para as narrativas em prosa?

OLGA SAVARY — Tenho, a respeito da diferença entre a minha experiência com a poesia e com a prosa uma sensação engraçada, divertida. Digo que o conto me coloca com os pés no chão, na realidade, embora me permita também voar. Já a poesia me faz ver o mundo como se eu estivesse viajando em um disco voador vindo de outra galáxia, ou seja, a visão de tudo é ampliada, mais alta. De qualquer modo, embora tenha começado primeiro com a poesia, como muitos autores (Ariano Suassuna, amigo admirado e excepcional brasileiro, por exemplo), simultaneamente escrevi contos também. Mas sempre me ative e respeitei mais a poesia. Não é à toa que tenho dezesseis livros de poesia versus dois de contos. Agora tem uma coisa curiosa: a prosa dá mais poder, num certo sentido. Posso manobrar a realidade com maior desenvoltura do que quando exerço a poesia.

C.A. — Saudada por Nelly Novaes Coelho como “poeta que não tem pressa e que constrói, lenta e lucidamente, seu universo”, como você obtém a riqueza criadora de seus poemas, aliada a um difícil espírito de síntese que deve habitar na natureza da verdadeira criação poética?

OLGA SAVARY — Como quase todo poeta, já fui mais “derramada”. Sabendo que a poesia em si ama a síntese, a economia, a magreza verbal, sem adiposidades vãs, tratei de ir fazendo um spa no meu texto. Nas esticadas conversas com Drummond, ao longo de nossas vidas, ele foi me dando uns toques bastante úteis. Temos que ter a humildade de aprender com quem viveu mais e sabe mais. Por isso é que a vida inteira sempre busquei amigos mais velhos que eu. Adoro aprender. Estou sempre estudando, para saber cada vez mais. O conhecimento e a lucidez são o bem máximo. A vida é muito curta para ser pequena — e a nossa dignidade exige que sejamos maiores que a vida. Vida não é para amador, é para profissional. Penso que o aprimoramento foi acontecendo através dos desafios vencidos. Eu, particularmente, sou movida a desafios. É bom superá-los: nos amadurecem, nos enriquecem. Há os que perguntam: por quê? Pergunto eu: por que não? O melhor é quando alguém lê um poema ou um texto corrido da gente e, sem ver os créditos, sabe que o texto é nosso. Drummond me disse isso a vida toda, desde o meu início: — “O mais difícil em literatura é construir uma marca própria, uma dicção peculiar, original,  e isso você, Olenka, já conseguiu. Você tem esta marca como uma impressão digital, única.” Estas palavras do mestre sempre foram uma força, um estímulo a me acompanhar até hoje.

C.A. — O escritor e crítico Antonio Carlos Villaça detectou em sua poesia a marca de uma Cecília rediviva. Como você se definiria no fazer poético?

OLGA SAVARY — Villaça escreveu, a respeito de meu primeiro livro Espelho provisório, que eu me ombreava com Cecília, não em semelhança mas em força. E me chamava sempre de madona, de “a Mona Lisa de Copacabana”, por certa semelhança que ele via em mim com a pintura de Leonardo Da Vinci (Duhília e o presidente do PEN Clube, Marcos Almir Madeira, também me chamavam assim). Dizia Villaça que meu silêncio guardava um mistério como o da Gioconda. O poeta e crítico Ivan Junqueira, também membro da ABL, da qual foi presidente, escreveu em O Globo duas críticas sobre meus livros Sumidouro (1977) e Altaonda (1979), e intitula artigo editado no livro dele A sombra de Orfeu, de 1984, com a pergunta: “Cecília? Não, Olga.” Dostoiévski é quem afirmava que só a arte salva a vida. Creio nisso, fazendo de meu ofício a minha religião. Será que Deus está em uma religião organizada? É mais fácil Ele estar em toda parte, e está, até na poesia, na criação. Deus vive dentro de mim, na minha casa, e não necessito nem de DDD para falar com Ele, falo a toda hora, desde criança. Pois é, tento ser inteligente sendo simples. Trabalho com a essência, desprezando o cascalho. Tudo cabe em mim, só eu não caibo em mim. Escrever é como comer: palavra tem cheiro, tem gosto. É fundamental como fazer comida, como comer. Poema é documento: aquele que o público mais gosta é como carteira de identidade do poeta. Crio entre o júbilo e a humildade. A literatura me deixa livre, incita-me a exercer minha indisciplina organizada.

C.A. — Seus poemas e contos refletem aquilo que vive, são autobiográficos? Ou não?

OLGA SAVARY — Não tem escapatória: o autor acaba se colocando, de uma maneira ou de outra, naquilo que escreve. Afinal é a visão de mundo dele que diz presente no texto e não de outro qualquer. Se ele for um bom caçador, e é fundamental que o escritor seja um caçador, tudo irá motivá-lo a escrever: aquilo que ele vive, o que ele observa da vida, uma frase escutada ao acaso na rua enquanto anda, toda e qualquer coisa. Mas não é necessariamente autobiográfico. É mais, muito mais que isso.

C.A. — Por que razão a professora de Literatura Brasileira da USP Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo, que escreveu dois livros sobre sua obra, a chama de artista “multimídia”?

OLGA SAVARY — Antes, desde 1970, outros professores e críticos me estudaram, entre os quais Gilberto Mendonça Teles (em aulas na PUC–RJ), Angélica Soares (da UFRJ. Após várias palestras e aulas, publicou-me em A paixão emancipatória, livro editado pela Difel), Christina Ramalho (da Universidade Veiga de Almeida — UVA), Dalma Nascimento (da UFRJ), Lucia Helena Vianna (da UFF), Lucila Nogueira (que prepara pela UFPE livro sobre minha poesia traduzida em várias línguas), Maria Alice Aguiar (da UERJ), entre outros. Porém há anos, desde 1987, a professora Marleine Paula estuda e escreve sobre minha obra em jornais e revistas (O Estado de São Paulo, D.O. Leitura, e revistas especializadas da USP). Quem nos apresentou foi a escritora e professora Mila Ramos, de Santa Catarina, em uma Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Mais tarde, continuando a pesquisa, a professora Marleine Paula escreveu sobre meus dez primeiros livros. Todo ano, convidada a dar aulas na Espanha e em Portugal, recebeu a proposta de publicar, em Lisboa, o livro de ensaio A voz das águas: uma interpretação do universo poético de Olga Savary, pela Editora Colibri (a mesma que edita os livros ensaísticos dos professores da Universidade de Lisboa e de outras universidades portuguesas), em convênio com a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e a Unicid, editado em maio de 1999. Este livro recebeu o Prêmio APCA — Associação Paulista de Críticos de Arte — para Ensaio. Agora, em 2006, foi finalizado o segundo livro dela sobre minha obra, onde analisa os meus outros de poesia e de ficção, hoje somando dezoito livros pessoais, a sair por uma editora de São Paulo. A professora Marleine Paula, além da minha obra, estuda outros autores, como Milton Hatoum, tendo um livro publicado sobre este escritor. Ela me chama de artista multimídia pela diversidade de meu trabalho e pelo interesse que ele desperta em outros artistas. Por exemplo: mais de trinta compositores da chamada música erudita (Aylton Escobar, Guerra-Peixe, Guilherme Bauer, Ricardo Tacuchian, Vânia Dantas Leite e outros) e da MPB (Antonio de Paula, Déa Bertran, Flávio Pantoja, Flávio de Lira, Fred Martins, Gui Tavares, Helder Parente, Irinéa Maria, José Henrique Nogueira, Madan, Mirabô, Nosly, Paulo Ciranda, Rosa Passos, Wilson Malheiros, dentre outros) musicaram poemas meus e apresentaram essas composições em teatros do Brasil e do exterior desde 1972, também com discos gravados. Só Madan, radicado em São Paulo, musicou dezoito poemas meus. E ainda cantores, entre os quais Maricene Costa (de São Paulo, no Projeto Pixinguinha, em teatros, e no Circo Voador, do Rio) e Carlos Navas (de São Paulo, com apresentações no Mistura Fina, do Rio, e com discos gravados), entre outros. Atores e atrizes interpretaram poemas e contos meus em vários espetáculos (Alessandra Hartkopf, Anídia Martins, Ary Coslov, Beth Araújo, Dedina Bernardelli, Denise e Cairo Trindade, Cláudia Petrina, Felipe Martins, Isabella Cerqueira Campos, Isadora de Faria, Jacqueline Laurence, Maria Helena Dias, Martha Overback, Maria Pompeu, Mayara Magri, Messody Benoliel, Miguel Falabella, Neila Tavares, Núbia de Oliveira, Roberto de Cleto, Sandra Barsotti, Sérgio Fonta, Shulamith Yaari, Sonia Santos, Stepan Nercesian, Thaia Perez, Tetê Medina, Zezé Polessa, e outros. Até o escritor e deputado Fernando Gabeira e o poeta Ferreira Gullar leram poemas meus, na Livraria Argumento, quando lancei, em 1998, a obra reunida. Sou sempre chamada para integrar antologias brasileiras e estrangeiras (na Alemanha, França, Itália, Portugal, entre as quais Poesia da América Latina, reduzida seleção bilíngüe de apenas dezoito poetas, com a língua original e holandês, entre dois Prêmio Nobel — Neruda e Octavio Paz —, ao lado de Ferreira Gullar e Lêdo Ivo, em livro de arte, editado na Holanda pelo Poetry International, 1994). Já fui assunto de monografias, como a da psicóloga Beth Pacheco, entre outras. E tese de doutorado da professora Claudia Pastore (na USP), da psicóloga Eliane Accioly Fonseca (na PUC/SP) e da professora Maria Longobardi (na Itália), entre outros. Artistas plásticos, artistas gráficos, fotógrafos, psicólogos, psicanalistas e de outras profissões utilizaram poemas e contos meus em exposições e palestras, no Rio e em São Paulo (Anídia Martins Rodrigues, Elza O.S., Guita Charifker, Marília Kranz, Martha Pires Ferreira,  Ruy Lisboa, Suely Regina Avelar, Vera Salamanca, Wilma Martins, Wilson de Lyra Chebabi, etc.).

C.A. — Você foi personagem (como personalidade, como você mesma) em livros dos escritores Stella Carr, Ruy Castro, Jason Tércio, José Maria Cançado, José Carlos Oliveira (o escritor e cronista Carlinhos Oliveira, do Jornal do Brasil), Wanda Figueiredo (irmã do humorista Henfil e de Betinho, do Programa Fome Zero, autora do livro Aqui Rio) entre outros. Como é ser personagem, fazer parte da história de uma cidade como o Rio de Janeiro?

OLGA SAVARY — Fui personagem em livros de ficção (como num dos que foram escritos por Stella Carr, de São Paulo) e em livros de fatos reais, como Ela é carioca, de Ruy Castro (sobre o Rio de Janeiro e Ipanema dos anos 50 e 60, com uma curiosidade: na década de 50, duas escritoras paraenses, radicadas no Rio, iniciaram festas que ficaram famosas. Eneida criou o “Baile do Pierrô”, que acontecia em boate de Copacabana (festas à fantasia, com pierrô, colombina e arlequim, os personagens da comédia, ou traje a rigor. Votada à alegria, só me fantasiava de arlequim, pintado especialmente pra mim por Glauco Rodrigues). Simultaneamente, criei as festas chamadas pelos amigos de “Festas de Olga Savary”, pré-carnavalescas e da passagem do ano, o chamado réveillon (em francês, porque vinha da França nossa maior influência, naquelas décadas, e só depois é que nos “americanizamos”), que aconteceram durante anos, reunindo artistas, escritores, jornalistas, e outros, de profissões liberais. Sou séria e apolínea no trabalho, mas na hora da festa viro dionisíaca, que ninguém é de ferro. Não é assim que tem de ser? Esta parte de alegria herdei de minha mãe, que chamo em certos poemas de “rainha da festa”. Meu pai, cheio de senso de humor, era porém mais introspectivo, calado.

C.A. — Fala mais dessas “Festas de Olga Savary”. Como eram?

OLGA SAVARY — A primeira delas, organizei em regime bem artesanal na casa do fotógrafo José Oiticica, pai do artista plástico Hélio Oiticica, para cerca de cem a cento e cinqüenta pessoas, no bairro Jardim Botânico. A alegria era tanta que, indo a festa até as quatro, prorrogávamos até as cinco, seis e sete, ao nascer o dia, fazendo uma “vaquinha”, ou seja , passando o chapéu, onde cada um depositava o que podia, para pagar os músicos, e assim continuar a brincadeira. Aí parávamos, por faltar mais preparo físico. Depois, com o aumento de participantes, tive de buscar espaços maiores. Artista não tinha muito dinheiro, e éramos todos muito jovens, na faixa dos vinte, trinta anos, alguns com mais. Todos felizes, brincando, antes da fatídica ditadura de 64. Tinha gente de todas as idades e era como uma grande família. Busquei então lugares mais populares e em conta, onde não se gastasse muito. Como no caso das antologias, sempre gostei de proporcionar alegria para as pessoas. E pra mim também, claro, porque também sou filha de Deus, não é? Foi aí que descobri e lancei as gafieiras Estudantina Musical, Elite e Banda Portugal, no Centro, e o Restaurante Silvestre, em Santa Teresa. No princípio, gafieiras eram vistas com desconfiança, as pessoas pensavam que era lugar de malandragem e onde iam encontrar brigas. Porém eram pacatas, lugar de respeito, muito mais do que as boates de classe média, e onde de fato vigorava “os estatutos da gafieira”, regras de bom convívio social, como diz o samba. Sempre vi as gafieiras como lugares de esporte, onde se ia para dançar bem, sacudir o esqueleto, como brinco, como quem vai jogar uma partida de tênis. Não se cobrava entrada para “cavalheiro” ou “dama” e nem a mesa era paga. Pagava-se apenas o que era consumido.

C.A. — Os leitores gostam de saber da parte de vida do autor. Além dessas festas, você criou o Bloco de Ipanema, que resultou depois na Banda de Ipanema. Conta como foi.

OLGA SAVARY — Então, as festas eram animadas e tranqüilas, sem conflitos e bastante concorridas. Vinham pessoas de outros Estados e até do exterior a fim de participar. Esses lugares públicos, que não eram freqüentados a não ser por gente simples, passaram a ser moda entre o pessoal da Zona Sul do Rio, e é assim até hoje. Qualquer festa, nessa época, apresentava distúrbios, encrencas, brigas. Nas que organizei, tudo sempre transcorreu na mais santa paz. Criei também o Bloco de Ipanema (de carnaval), que resultou depois na Banda de Ipanema, que sai, até hoje, nos dois sábados: quinze dias antes e no sábado de carnaval.

C.A. — Você participou também de alguns filmes, não como personagem, mas como personalidade, não foi?

OLGA SAVARY — Participei como eu mesma de dois filmes: Garota de Ipanema (não lembro o diretor) e Edu, coração de ouro, direção de Domingos de Oliveira. Nos créditos do filme, está o meu nome lá. Mas em Edu, coração de ouro, com Leila Diniz e Paulo José, estou entre personalidade e personagem. O diretor me deu a liberdade de inventar as minhas falas. Com trinta e dois anos de idade na época, bateu uma timidez e fiz a cena calada. Filmei o dia inteiro de oito da manhã às oito da noite, repetindo, repetindo, repetindo. Ora por um problema de continuidade de luz, ora por mil outros motivos. Deveria voltar no dia seguinte, para finalizar a cena, mas achei chatíssimas as repetições que não apareci mais. Assim, acabaram dando um jeito de terminar sem mim, ficando a minha participação mais breve. Já fui mais impaciente. Hoje sou mais tolerante. Mas justifico: não foi trabalho profissional, não recebi por isto. Quiseram homenagear-me. Assim, deixei pela metade o que deveria ter feito inteiro, única vez em que isto aconteceu na minha vida. É, não daria para atriz, como disse certa vez, respondendo a uma pergunta de Nelson Rodrigues.

C.A. — Outros dois misteres abraçam você: o jornalismo e o ofício de tradutora. Você muda ao exercê-los, ou eles se mudam em ti?

OLGA SAVARY — O jornalismo me livra de certo “barroquismo”, que considero às vezes excessivo em meu texto, me proporciona maior objetividade, me ensina uma simplicidade maior. E todos sabemos que ser simples é o mais difícil de se conseguir. Conversei muito sobre isto com Drummond, e ambos concordávamos nesse aspecto: nossa parte jornalista enxugava e limpava o texto do escritor em nós. Já a tradução, que ambos exercemos, é um exercício de pular obstáculos, desafios, ultrapassar limites. Nem sempre traduzo meus “parecidos”. O diferente nos ensina no mínimo tolerância e nos enriquece. Às vezes traduzo gente que inicialmente nada tem a ver comigo, que é meu oposto, mas que no final acabará tendo a ver, que me ensina alguma coisa, e daí me acrescenta. Como disse antes, estou sempre disposta a aprender. Levamos a vida aprendendo, não é? Aprendendo e nos aprimorando. A meu ver, este é um dos sentidos da vida, e servir é outro. Sempre exercendo o ofício, metáfora de nosso self, todos os dias, mesmo em sábados, domingos e feriados — e sem férias. Eu, pelo menos, obcecada pelo trabalho, até por uma questão de sobrevivência — sobrevivência de fato e do ponto de vista emocional — em todos os sentidos, posso dizer que quase nunca tirei férias pela vida afora. De verdade, só me lembro de ter tido férias quando era adolescente. Não tiro férias há mais de cinqüenta anos. Com um ritmo quase sempre de doze a dezoito horas de trabalho diário. Tudo isto explica por que produzi tanto e tão diversificado. Minhas férias estão embutidas no meu trabalho. Acaba com a minha coluna, porém é minha paixão e minha devoção, que me proporciona alegria, consolo e harmonia, tudo o que necessito para viver e sobreviver.

C.A. — No que diz respeito aos novos talentos das letras nacionais, quem atrai os olhos, o prazer e a atenção da escritora Olga Savary?

OLGA SAVARY — Temos bons poetas e ficcionistas novos. O Brasil é privilegiado na área da criação. Não só na literatura há destaques, mas em todas as modalidades criativas. Na Arte e na Ciência. Somos um país tão jovem e tão cheio de promessas e esperanças. Convinha é que a política fosse menos desperdiçada, perdulária e incompetente, para tudo andar melhor. Por exemplo, para a Cultura, a verba destinada a incentivar valores é ridícula, irrisória. Ainda assim, as coisas andam, cada um tentando fazer a sua parte. É preciso acreditar, mas com muita crítica e autocrítica.

C.A. — Você tem participação destacada em entidades de classe, convidada a ser membro titular do PEN Clube do Brasil, em 1982, ser membro da Comissão da Liberdade de Imprensa e de Direitos Humanos da ABI — Associação Brasileira de Imprensa, ser membro titular do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica, e foi a primeira e única mulher eleita presidente do Sindicato de Escritores do Rio de Janeiro, em 1997. O que mais tem a contar sobre essas suas atividades a favor da classe?

OLGA SAVARY — Visando o benefício coletivo para escritores e tradutores, num esforço individual, escrevi cartas à prefeitura do Rio de Janeiro — durante dois anos, entre 1982 e 1984 — e reivindiquei a isenção do imposto ISS para as duas categorias. Nas cartas, meu argumento foi o de que essas duas categorias já ganham muito pouco e mal. Aleguei que este imposto era injusto, sendo portanto inadmissível, e ter a inviabilidade de ser pago. Finalmente obtive resposta afirmativa: a abolição do imposto. Tive de “bombardear” a prefeitura com razões mais do que justificáveis para ter esse resultado. Informei essa conquista a Arthur José Poerner, que a publicou no boletim do Sindicato de Escritores, em sua gestão. É preciso que escritores e tradutores saibam e se beneficiem dessa isenção do ISS. Em anos, nem o Sindicato de Escritores e nem a Associação de Tradutores tiveram esse trabalho para obter o que consegui sozinha.  Sou determinada e, quando me empenho em uma causa justa, consigo resolvê-la.

C.A. — Você criou há muitos anos um projeto de gravações de livros para cegos, outro projeto pioneiro, não foi?

OLGA SAVARY — Criei, em 1987, com Virgínia Lombardi, o projeto inédito Ver Ouvindo, que constava de gravações de livros em cassete para cegos. Gravamos livros meus, dela e de outros autores, doando-os à Biblioteca de Jacarepaguá. Na tarde do lançamento, houve sarau, com atrizes interpretando poemas dessas doações. Como presidente do Sindicato — cargo para o qual não me candidatei, por não ter empatia por esse tipo de poder, mas para o qual fui convidada inúmeras vezes, sendo quase obrigada a aceitar, fui eleita por unanimidade em 1997 —, consegui equilibrar as finanças da entidade, que mais gastava do que recebia (coisa de que não me julgava capaz, para mim mesma uma surpresa, uma descoberta). Consegui também prorrogar por mais anos a utilização da casa que serve de sede ao Sindicato, que estava para ser retomada pelo proprietário de fato, o Metrô. Obtive da Fagga, firma que produz a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, a meu pedido graciosamente doado para o Sindicato, um estande grande, com mesa, cadeiras, estantes para exibir os livros dos sócios (caso fosse pago, o Sindicato desembolsaria uma quantia de que nem sonhava dispor, como qualquer editora na Bienal, onde os espaços são disputados, vendidos e ocupados a peso de ouro). Arregimentei novos sócios do Rio e de outros Estados. Programei eventos e palestras significativas no auditório Lima Barreto: o depoimento do poeta Moacyr Félix, a visita de Gustavo Dourado (então presidente do Sindicato dos Escritores de Brasília) e o especial lançamento da primeira antologia de poetas brasileiros na França, organizada pela escritora e jornalista pernambucana Lourdes Sarmento.

C.A. — Você sempre foi considerada uma espécie de líder de jovens poetas, de jovens escritores. E também musa, a receber poemas a ti dedicados. Fala sobre isso.

OLGA SAVARY — Jovens poetas, e outros nem tão iniciantes, por receberem certo acompanhamento e dicas sobre o fazer literário, fora os prefaciados e orelhados, me chamam de “madrinha literária”, “mãe em literatura”. Faço isso com prazer, com alegria — e rimos, eles e eu, com a leveza desse mister. Eles me ensinam também, porque acredito piamente que tudo na vida só é bom com troca. Quanto aos poemas a mim dedicados, não é propriamente que eu seja “musa”, não são poemas de amor de homem (ou mulher) para a Olga mulher. Sou mais é uma companheira de ofício apreciada pelos colegas, que me homenageiam e me confortam com essa solidária amizade literária. Em suma, é pura fraternidade, e eu lhes fico grata por tudo isso. Entre eles, conto com a dedicatória na parte água/ mar do mais recente livro de poesia de Antonio Carlos Secchin (do Rio de Janeiro), da poeta e professora de Geologia da UFRJ Maria Dolores Wanderley (de Natal/ RN), com a dedicatória de livros inteiros dos amigos-irmãos Merivaldo Pinheiro e Nicodemos Sena (paraenses), de Rita de Cássia Araújo (do nosso Ceará), de meu “irmão de alma” poeta maranhense Salgado Maranhão, de Wagner Ribeiro (Sergipe), para ficar nas mais recentes homenagens. Sem contar as dedicatórias da filha escritora Flávia Savary em mais de um livro, o que me comove e envaidece. Todas as dedicatórias, ao longo da vida, me aqueceram a alma, me fizeram alegre e feliz. São demonstrações amorosas de “minha família literária” por estes brasis e pelo mundo (como as do poeta Casimiro de Brito, de Ana Haterly, das professoras Maria de Santa Cruz e Vánia Chaves, todos de Lisboa, Portugal; de Adelina Alleti, de Milão, Agnese Purgatorio, de Bari, de Giovanni Ricciardi e Luciana Stegagno Picchio, de Roma, Itália). Tudo é prova de amor, mas um amor em sentido mais amplo.

C.A. — Você falou na dedicatória da parte água no livro do poeta carioca Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras. A água está sempre obsessivamente exposta em sua obra, seja poética ou ficcional. Por quê?

OLGA SAVARY — A água sempre me atraiu, porque foi lá que a vida no planeta Terra começou. Nascemos no líquido amniótico dentro da barriga da mãe pessoal, ou seja, dentro da água. O melhor parto é dentro da água. Assim, sempre usei esse elemento em poemas e nos textos todos como origem de vida e como metáfora erótica. Água é água propriamente dita — seja rio, igarapé, mar — ou as águas do corpo. Antonio Houaiss, ao escrever apresentações críticas sobre Magma e outros livros meus, chamou-me a atenção para o fato de eu ter usado a palavra água um sem-número de vezes (o número não me lembro agora, teria de contar no livro, livros), e era para eu tomar cuidado senão acabava morrendo afogada em tanta água. Rimos os dois e os outros amigos da ABL, que escutavam a conversa, com a brincadeira.

C.A. — Você diz ter um “casamento” com seu ofício. Como é estar sempre tão apaixonada pelo próprio trabalho?

OLGA SAVARY — É, faz tempo que estou casada com o ofício, com meu trabalho. Mente oca, oficina do diabo. Por isso me ocupo tanto, produzo tanto. Isso me proporciona a endorfina de que preciso para ficar bem e contente. Me massacra, mas me diverte. Além de tudo, é meu ganha-pão. É de escrever que vivo, sobrevivo. A respeito disso, tenho uma historinha interessante pra contar. Vivendo no Rio, conheci e convivi com quase todas as grandes personalidades do jornalismo e das artes todas, no geral. Aos dezessete anos, assistindo a um ensaio de uma peça de Nelson Rodrigues, no Rio, topei com o autor, em um intervalo, no teatro. Curioso, perguntou-me o que eu fazia no TBC — Teatro Brasileiro de Comédia, que reunia grandes nomes da cena brasileira, como Beyla Genauer, Cacilda Becker, Cleide Yáconis, Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi, Sérgio Britto, Tônia Carrero, Walmor Chagas e tantos mais —, se eu pretendia ser atriz, diretora, produtora ou algo no gênero. Disse que não, que apenas gostava de ver o produto da arte nascendo, por meio dos intérpretes e do diretor, fosse uma peça de teatro, um livro, uma coreografia de dança, um filme, qualquer coisa, igual a uma plantinha que vai brotando. Perguntou-me sobre meus outros interesses. Respondi que tudo me despertava curiosidade: literatura, artes plásticas, artes gráficas, teatro, cinema, música, dança, artes em geral. Daí indagou se eu tinha namorado, e eu disse que não. Era um questionamento, pura curiosidade, sem nenhuma segunda intenção, diga-se a bem da verdade. Ouvindo tudo que respondi, Nelson então vaticinou: “Menina, coitado do homem que se apaixonar por você. Com tantos interesses em arte e na sua literatura em particular, não vai sobrar espaço para homem nenhum na sua vida. Você já investiu paixão em tudo o que faz, não vai sobrar para mais nada e ninguém.”

C.A. — Tendo realizado tanta coisa, que projetos desenvolve no momento?

OLGA SAVARY — Além de tudo o que já contei nesta entrevista — que levei um ano e meio para lhe responder, pelo que me penitencio, mas a culpa foi do acúmulo de trabalho —, escrevo cinco histórias de mulheres arcaicas e uma mulher do futuro, livro encomendado pela ambientalista Tereza Kolontai. É um projeto difícil, mas fascinante.

C.A. — Como já fizeram com sua obra há anos, existe no momento um projeto de música erudita com poemas seus, não é?

OLGA SAVARY — Há um CD projetado pelo compositor Guilherme Bauer (meu parceiro desde 1972 e membro da Academia Brasileira de Música, fundada por Villa-Lobos), com mais outros compositores de música, todos compondo sobre poemas de meus livros, a sair.

C.A. — O teatro também se volta para seus textos, como já foi feito. O que está sendo elaborado no momento?

OLGA SAVARY — A atriz Isabella Cerqueira Campos, a eterna Capitu de Machado de Assis no cinema, que há anos projeta fazer um espetáculo teatral com poemas e contos meus, agora retoma essa idéia, está com uma boa produção a caminho, e procura teatro, etc. Parece que agora a coisa sai. E há outros projetos em esboço.

C.A. — Que projetos são esses?

OLGA SAVARY — Não se passa um mês ou pelo menos um semestre que não surja uma novidade. Recebo em casa uma correspondência enorme, de cem a trezentas cartas por mês, às vezes quase quatrocentas, com convites e pedidos de participação em tudo quanto é coisa: para mandar poemas, contos e depoimentos para publicações, para participar de congressos e de antologias, tudo. É a colheita de quem planta muito.

C.A. — E como se chamará o espetáculo com seus textos, no Rio?

OLGA SAVARY — Isabella já interpretou contos meus, do livro O olhar dourado do abismo, (editado pela Bertrand Brasil/Record) e de Mário Pontes na Bienal do Livro do Rio, em 2001, e poemas de meu livro Berço esplêndido, quando este foi lançado pela Palavra & Imagem, na Casa de Cultura Laura Alvim, também em 2001. Outros atores já montaram espetáculos com textos meus, em épocas variadas. E outros mais sonharam com um espetáculo de longa duração, de hora e meia a duas horas, que não foi avante por falta de dinheiro. Isabella, que conhece minha obra há muitos anos, quer colocar o título “Olga Savary, a Mona Lisa de Copacabana”, como pintores (Scliar, Farnese, Glauco Rodrigues e outros) me chamavam e amigos ainda me chamam.

C.A. — Dizem que você é uma pessoa não convencional. E mesmo não gostando de máquinas, sua obra está citada em mais de treze mil sites na Internet. Como é isto?

OLGA SAVARY — Os amigos é que me informam desses treze mil sites, lá colocados, suponho, por editores e apreciadores de meu trabalho, não por mim, que não entendo bem dessas coisas e não sei fazer uso delas. Alguns pedem autorização, outros colocam direto na internet. Se é bom ou ruim? Não sei. Já vi poemas meus truncados, faltando pedaço, contos com nomes trocados. O certo e melhor é fazerem contato comigo através do meu endereço: Rua Sá Ferreira, 161, apto. 604, CEP 22071-100, Copacabana, Rio de Janeiro-RJ. Telefone (21) 2287-6539. Penso que, como em tudo na vida, há um lado positivo e um lado negativo. A obra parece que cria perna e anda sozinha. O jeito é deixar ir, que caminhe.

C.A. — Uma mensagem para aqueles que pensam em mergulhar nas águas literárias.

OLGA SAVARY — Paixão. Em primeiro lugar, paixão — como em tudo na vida. Sem isso não se chega a nada, a lugar nenhum. A Literatura é uma dama exigente, não dá descanso. Ou você entrega a ela toda a sua energia ou ela lhe vira as costas. É claro que se tem de nascer com um certo talento, aprimorado ao longo do tempo. Então: talento, dedicação completa, furor apaixonado, mas com serenidade. Isso é possível? É. Basta investir, sempre. A melhor visão de mundo é a de um criador. Esta é a sua recompensa, que ninguém lhe há de tirar. E amem seu país, é ele o que lhes cabe; façam por ele o que gostariam que ele fizesse por vocês. Só assim o país cresce, todos crescemos.

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*Clauder Arcanjo (CA) é escritor cearense radicado em Mossoró-RN, autor de Licânia (contos, Sarau das Letras, 2007)


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