quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O NU E A ESCADA: 100 ANOS

Marcel Duchamp era um espírito zombeteiro – gostava de colocar bigodes em mulheres, rodas de bicicleta em bancos de cozinha e latrinas em salas de museu. Duchamp fazia esse tipo de coisa porque sabia que o humor e a ironia movimentam os sentidos estabelecidos, desviam as ideias feitas e botam o tempo fora de seus eixos.

Falando em tempo, é o momento de lembrar o centenário do Nu descendo uma escada – esse quadro aparentemente tão “simples”, aparentemente tão “cubista”, que Duchamp pintou, sempre com seu espírito de folgança, em 1912.


Duchamp cometeu duas versões do quadro: na primeira, a escada é espiralada; na segunda e definitiva versão, a escada é reta, e conseguimos acompanhar todos os movimentos desse corpo nu (uma montagem sequencial que lembra as fotografias de Muybridge – de quem Francis Bacon, em suas conversas com David Sylvester, também se declarou admirador).

Diante de um corpo nu que desce uma escada eternamente, poderíamos fazer a pergunta que tantos fizeram quando o quadro foi exposto: por que um nu deve descer uma escada?

Esse tipo de pergunta evoca o absurdo de perguntas semelhantes como: por que a galinha atravessou a rua? Ou: por que as baratas morrem de barriga pra cima? O nu, gênero clássico na história da arte, prova de fogo para muitos artistas ao longo de séculos, é transformado por Duchamp em uma charada.

Calvin Tomkins, biógrafo de Duchamp, escreve que a figura do quadro era “uma carapaça vazia, uma espécie de robô encapuzado”, e que a “carga erótica, como o sentido de movimento, não estava localizada na retina, mas na mente do observador”. Tomkins também escreve que o quadro foi recusado no Salão dos Independentes daquele mesmo ano – recordando o fato cinquenta anos depois, Duchamp teria dito que, depois disso, sua afeição por “grupos” e “escolas” caiu para níveis ainda mais baixos.

Segundo Harold Rosenberg, em um dos textos de Objeto ansioso, foi a partir do Nu… que a pintura começou a morrer – não apenas para Duchamp, mas também para os artistas que começavam a prestar atenção àquilo que fazia Duchamp. E Hans Belting, em O fim da história da arte, afirma que o humor, a ironia e o erotismo eram as armas de Duchamp contra a “ficção da sociedade burguesa”.

O Nu descendo a escada era apenas o início desse projeto – Duchamp, ainda em 1912, ampliaria muito mais seu arsenal (seu armory show…) ao começar os preparativos para o Grande Vidro ou A Noiva despida por seus Celibatários, mesmo e, é claro, ao preparar o terreno para a emergência dos readymades. Além disso, 1912 foi o ano em que Duchamp descobriu os textos e a imaginação delirante de Raymond Roussel – manancial infinito dos pândegos mais delirantes.

O Nu descendo a escada, portanto, é apenas uma das primeiras ondulações dessa onda que atravessa toda arte do século XX. Como espírito galhofeiro que era, Duchamp segue sendo – está por aí, no ar, em constante movimento como seu Nu…, enigmático como um desejo sem resolução, sem fundo, que não se cansa de retornar.

* Kelvin Falcão Klein é crítico, autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Ed. Modelo de Nuvem, 2011). Escreve em falcaoklein.blogspot.com.br


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